Brasil de FatoSegundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgados nesta quarta-feira (12),
15.569 pessoas presas já foram contaminadas pelo coronavírus no Brasil. Se
somado aos casos de infecção entre os servidores, que totalizam 6.908, o número
total de diagnósticos positivos para a covid-19 no sistema carcerário chega a
22.477. Um aumento de 72,4% nos últimos 30 dias.
O número de pessoas privadas de liberdade que perderam a
vida em razão da covid-19 chega a 89. Entre os trabalhadores, foram 73 mortes.
No total, são 162 óbitos registrados desde o início da pandemia.
O monitoramento do CNJ aponta ainda que as regiões Sudeste e
Centro-Oeste concentram a maior porcentagem de diagnósticos positivos entre as
pessoas encarceradas. Apenas o estado de São Paulo, por exemplo, registra 3.984
contaminações.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Leonardo Biagioni, defensor
público do Estado de São Paulo e coordenador do Núcleo Especializado de
Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nesc), afirma
que não há condições mínimas dentro do sistema carcerário brasileiro para
impedir a proliferação do vírus entre os presos.
Além da superlotação tornar o distanciamento social
impraticável, Biagioni ressalta que os detentos também não têm acesso a
produtos de higiene e fornecimento de água da forma adequada para a
higienização correta.
A recomendação 62/2020, feita pelo CNJ no início da
pandemia, alertou para os perigos da proliferação do coronavírus no cárcere e
incentivou magistrados a reverem prisões de pessoas de grupos de risco e em
final de pena que não tenham cometido crimes violentos ou com grave ameaça. No
entanto, conforme explica Biagioni, a orientação não tem sido cumprida e as
medidas do Estado brasileiros são tímidas diante da gravidade do problema.
“Infelizmente, essa resposta não tem vindo da forma que
deveria pelo poder Judiciário, que seria o responsável por esse encarceramento
em massa que existe hoje no país. Já era necessário um desencarceramento em
massa anterior ao período de pandemia e agora há uma necessidade ainda mais
urgente”, defende o coordenador do Nesc.
“Todos os órgãos internacionais e nacionais que se
relacionam ao direito da população presa já disseram que a principal medida é o
desencarceramento. O desencarceramento é a única medida viável e efetiva para
diminuir qualquer possibilidade de contágio e prevenir a doença no interior do
cárcere”, enfatiza.
Um levantamento feito pelo Nesc após visita na última
sexta-feira (7), constatou que 47% dos detentos do Centro de Detenção
Provisória (CDP) II de Pinheiros, na zona Oeste de São Paulo, estão contaminados pela covid-19.
De acordo com Biagioni, essa porcentagem de contaminação tem
sido a média na parcela restrita de unidades prisionais que passaram pela
testagem em massa.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: São mais de cem mil vidas perdidas para a
covid-19 no Brasil. Qual a situação das pessoas privadas de liberdade, cinco
meses após a chegada da pandemia?
Leonardo Biagioni: Na verdade, a população privada de
liberdade carece de direitos antes mesmo do período de pandemia. Sempre foi privada
de direitos básicos nas unidades prisionais, como os direitos previstos na Lei
de Execução Penal por exemplo. As equipes mínimas de saúde são inexistentes. Em
São Paulo, por exemplo, não há nenhuma unidade prisional das 176 que tenha uma
equipe mínima de acordo com o Programa Nacional de Ação Integral à Saúde da
população privada de liberdade.
No período de pandemia, as violações de direito, como a
precariedade da alimentação e a questão da saúde, que eu trouxe, ausência de
itens para garantir assistência material, falta de água... 70% das unidades
prisionais de SP racionam água, são utilizadas nesse período de pandemia. Sendo
que esse período exige, para a prevenção da contaminação da doença, uma
higienização e o distanciamento social que não são possíveis de serem
realizados.
Principalmente em unidades prisionais superlotadas, como
ocorre em todo país e aqui no estado de São Paulo. Onde não se garante direitos
mínimos para a higienização da população, tendo em vista que 70% das unidades
prisionais racionam um item básico para se falar em higienização que é a água.
Não há fornecimento mínimo de água para as pessoas presas.
E também ausência de itens materiais. Nas inspeções feitas
pelo Nesc, verificou-se, que, por exemplo, 70% das pessoas não recebiam
sabonete, um item muito básico, em regularidade suficiente para manter a
higienização. As violações acabam sendo potencializadas no período de pandemia.
Quais foram as respostas dadas pelo Estado brasileiro para
frear o avanço da pandemia dentro dos presídios? Como avalia essa atuação?
Todos os órgãos internacionais e nacionais que se relacionam
ao direito da população presa já disseram que a principal medida é o
desencarceramento. O desencarceramento é a única medida viável e efetiva para
diminuir qualquer possibilidade de contágio e prevenir a doença no interior do
cárcere.
Queria citar aqui a Recomendação 62 do Conselho Nacional de
Justiça, que trouxe diversas recomendações, sendo a principal o próprio
desencarceramento. Principalmente entre grupos vulneráveis e, infelizmente,
essa resposta não tem vindo da forma que deveria pelo poder Judiciário, que
seria o responsável por esse encarceramento em massa que existe hoje no país.
Já era necessário um desencarceramento em massa anterior ao
período de pandemia e agora há uma necessidade ainda mais urgente. Infelizmente
essas medidas não vêm sendo tomadas. No Plano Executivo, vimos no início da
pandemia, inclusive, algumas declarações do Ministério da Justiça, que mostrou
um desconhecimento notório em relação ao que ocorre no cárcere, uma vez que as
medidas propostas eram o distanciamento social, por exemplo.
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Casos confirmados e óbitos por região entre os presos no Brasil / Arte: CNJ |
Sabemos que isso é impossível. Existem unidades prisionais
em que a superlotação chega a 200%, 300%. Não tem como falar em distanciamento
de um metro e meio, que era o que se colocava na normativa, assim como
separação em celas individuais. O que deveria ser um direito garantido, mas,
diante da realidade do cárcere, sabemos que não seria possível.
As medidas são muito tímidas, não avançam. Em relação ao
sistema de saúde no cárcere, não há um avanço também em relação aos
profissionais nesse período de pandemia. O que se observou foi até mesmo uma
redução, uma vez que esses profissionais não ingressaram em algumas unidades
prisionais nesse período de pandemia. É um movimento contrário aquilo de que
deveria ser efetivado.
Conforme boletim mais recente do CNJ são 15.569 casos
confirmados de coronavírus nas prisões brasileiras e 89 óbitos. Esses dados
podem estar subnotificados?
Com certeza. Na verdade, o que temos que verificar é o
número de testes que foram realizados. Há uma ausência completa na realização
de testes. Apenas 5% da população prisional no nosso país foi testada. Cerca de
39 mil testes confirmados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Ou
seja, apenas 5% da população carcerária, uma vez que, conforme o próprio CNJ,
nossa população estaria variando em torno de 800 mil pessoas presas.
O que é importante destacar é a porcentagem da população
infectada, contaminada pela doença: 40% das pessoas testadas foram
identificadas com covid. Então, 40% dos testes realizados foram confirmados.
Isso causa um espanto, porque se trazemos esse número de 40% para a totalidade
do sistema prisional, chegaríamos em mais de 300 mil casos. É importante dizer
que isso se confirma.
Quando se faz testes em massa nas unidades prisionais, a
porcentagem tem sido essa. Queria ilustrar com duas unidades prisionais de São
Paulo. A Penitenciária II de Sorocaba, que tem uma população prisional de 2 mil
pessoas e cerca de 700 pessoas foram identificadas com a doença, o que daria
por volta de 35%. No Centro de Detenção Provisória II de Pinheiros, dos 1609
presos, 748 também estariam com a doença, ou 46%.
Tem sido a realidade. Onde se testa, tem tido, mais ou
menos, esse percentual de contaminação. O que assusta e muito.
A recomendação 62 do CNJ fala da revisão de prisões de
pessoas em grupo de risco e em final de pena. Até junho, o Conselho afirma que
foram identificadas 32,5 mil solturas. Como avalia o impacto da medida?
Posso fazer uma avaliação pelo estado de SP. A Defensoria
compilou alguns dados, analisou 30 mil processos de população que estaria em
situação do grupo de risco, prevista pelo CNJ, e apenas 4% dessa população de
fato teve essa soltura. Está muito abaixo do que o minimamente recomendado pelo
CNJ. Vemos, infelizmente, uma resistência muito grande do Judiciário na soltura
e até a essa recomendação expedida.
Aproveitando que citou o Judiciário, o que essa realidade
atual explícita sobre a lógica do sistema carcerário brasileiro?
Se antes desse encarceramento em massa e do período de
pandemia que nós vivemos, já era necessário o desencarceramento em massa,
agora, além há também a necessidade de celeridade em desencarcerar. Até
pensando em medidas efetivas, foram vários pedidos coletivos que a Defensoria
Pública fez. Queria citar habeas corpus que foram impetrados diretamente no
Tribunal de Justiça diretamente para a soltura de população idosa, de pessoas
que compõem o grupo de risco, que sequer foram distribuídos. O Tribunal sequer
apreciou esse pedido.
Isso mostra essa resistência. O quanto o Tribunal está
refratário desse conservadorismo, como em todo canto, como um órgão de
segurança pública e não julgando a situação dessas pessoas. Principalmente que
tem a mesma situação jurídica. População idosa, que está no grupo de risco, que
não praticou ou não está sendo processado por um crime com grave ameaça ou
violência, e nem assim houve essa análise coletiva da situação dessas pessoas.
Para haver de fato uma mudança nesse panorama, seria necessária uma atuação
coletiva.
Outro exemplo, é o de mulheres gestantes e lactantes. Um
grupo hipervulnerável, em situações absurdas nas unidades prisionais. Dezesseis
defensorias impetraram em conjunto um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal
(STF), e, infelizmente, negou-se a liminar. Impedindo que mulheres gestantes e
lactantes tivessem direito à prisão domiciliar nesse período de pandemia.
Agora foi interposto, inclusive, um recurso no STF. Haverá
um julgamento no dia 21. Quem sabe tenhamos um retorno positivo, no qual a
Suprema Corte consiga olhar com outros olhos para essa situação. Porque se não
vamos perpetuar a lógica da exclusão.
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Casos confirmados e óbitos por região entre os servidores do sistema prisional / Arte: CNJ
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Verificamos que de fato a percepção das pessoas, e chegando
ao Judiciário, seja essa: que o sistema prisional seja somente um sistema de
exclusão. Um amontoado de corpos jovens, negros, uma punição por si só. O que
contraria o próprio ordenamento jurídico brasileiro. Acaba distorcendo,
inclusive, o que é um Estado democrático.
O STF já declarou há alguns anos que o estado de coisas que
ocorrem dentro do sistema prisional é inconstitucional. Não garante os direitos
que deveria garantir. Ou seja: existe a margem da legalidade. Isso foi dito
pelo nosso próprio STF e observa-se que não muda. O problema é esse: não se
muda a cultura.
A maioria da população que está presa hoje no Brasil não
praticou um crime com grave ameaça ou violência. Observamos isso todos os dias.
São pessoas que estão nessa situação degradante, situações desumanas, de maus
tratos, como o próprio STF já disse, e não praticaram crime com grave ameaça ou
violência. Ou seja, não agiu com uma conduta violenta e está submetido a uma
situação de violência. O que é muito contraditório se queremos ter um Estado
mais civilizado.
Dos 1600 processos analisados pela Defensoria em relação à
população idosa do estado de São Paulo, somente 7% teve a soltura. Estamos
falando de pessoas com mais de 60 anos dentro do cárcere, presas. Uma situação
muito degradante e, inclusive, se reconhece o próprio processo de
envelhecimento precoce.
Falamos de uma população idosa em uma sociedade extramuros
com 60 anos de idade. Mas, se pensarmos isso no cárcere essa idade é menor
devido às condições degradantes. Talvez 50 anos. Mas sequer as de 60 anos não
estão tendo a oportunidade de ter a pena privativa de liberdade nas unidades
prisionais convertidas para uma prisão domiciliar. Ou mesmo pessoas presas
provisoriamente, que nem uma condenação possuem.
Por outro lado, vimos uma decisão da Justiça que favoreceu
Fabrício Queiroz, investigado pelo esquema de rachadinha na Alerj. Ele foi
beneficiado com a prisão domiciliar poucos dias após ser preso por estar no
grupo de risco da covid-19. O que isso mostra do ponto de vista do papel da
Justiça? Há uma diferença de tratamento?
Na verdade, essa diferença de tratamento é um aspecto histórico.
Está inserido na própria prisão, que em seu surgimento ocupa o espaço de
estrutura de "depósito dos excluídos" no sistema capitalista. Isso
acaba sendo colocado em casos concretos como esse. Justificando algumas
solturas, que podemos entender como legais, mas que não vêm para outro grupo.
Para outro grupo mais vulnerável, infelizmente.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pediu
que o governo brasileiro adote medidas para frear a proliferação da covid-19
nos presídios, após um pedido da própria Defensoria e outras organizações.
Tendo em vista que o contágio segue crescendo pelo país, qual a perspectiva
para a população carcerária diante do governo Bolsonaro?
Foi um pedido que fizemos com diversas outras entidades e
que foi acolhido. E, principalmente, para o Estado brasileiro, que entre as
medidas a serem tomadas, esteja, de fato, o desencarceramento. Esse é o
objetivo e forma mais concreta e efetiva de se lidar com essa doença em
unidades prisionais.
Apenas havendo um desencarceramento, que conseguiremos de
fato minimizar os danos. Espero que com essa decisão da Comissão
Interamericana, com essa orientação que chega ao Estado brasileiro, tenhamos
uma mudança de postura em relação ao Judiciário, que ele mude a forma de atuar
em relação ao que vem ocorrendo e às decisões que vêm sendo proferidas ao
contrário de todas as recomendações nacionais e internacionais.
Bem como, que consigamos obter de fato testagens na
população prisional. Que se tenha um maior cuidado e atenção em relação às
políticas de saúde, a disponibilização de itens básicos de higiene. Que o
Departamento Penitenciário Nacional (Depen) se coloque de uma forma mais
pró-ativa nessas circunstâncias, principalmente na distribuição de itens de
higiene, na questão do Executivo, na sua competência. Na questão da Política de
Atenção Integral à Saúde do sistema prisional, que isso se dê de uma forma mais
efetiva, bem como a suspensão do racionamento de água. Essa condição absurda e
completamente desumana que, infelizmente, ainda ocorre nas unidades prisionais.
Quando se fala sobre a situação dos presídios brasileiros,
há uma defesa dos governos conservadores em prol da construção e privatização
de novos presídios. Qual o posicionamento
da Defensoria sobre isso?
Precisamos parar de construir presídios e construir órgãos
de direito social que de fato vão combater causas consideradas crimes, como
escolas, hospitais. Quem sabe se parássemos de fechar escolas e construir
presídios e fizéssemos o inverso, nossa sociedade não estaria muito melhor.
Acredito que temos evoluir no sentido da questão do
desencarceramento, pegando toda essa realidade que existe hoje, de uma
população majoritariamente pobre, com grande representação da população negra.
A maioria da população prisional não praticou crime de grave
ameaça ou violência, estão presas por tráfico. Quando falamos das mulheres,
dois terços estão presas por tráfico e quando falamos tráfico é aquele em que a
pessoa é pega com 10 gramas de cocaína, 20 gramas de maconha. Essa é a média
das pessoas que estão presas.
Temos que pensar uma política de desencarceramento e
descriminalização de algumas condutas, e não de construção de presídios. Se
construirmos um presídio, esse presídio vai superlotar, e essa vai ser a
política.
Se formos pensar em uma política racional, civilizatória, de
garantir direitos, temos que parar com políticas paliativas, que é o sistema
prisional e de segurança pública, e pensar em outras medidas mais efetivas
alocando recursos para essas outras áreas. Como moradia, lazer, saúde,
educação. Isso sim melhoraria todos os efeitos do cárcere como ocorre nos
países mais desenvolvidos.
Sem essas medidas, então, as pessoas encarceradas estão fadadas
a um grande risco de contaminação?
Exato. As medidas determinadas pela sociedade é o
distanciamento social e a própria higienização. O distanciamento social é
impossível em unidades superlotadas e a higienização é comprometida em unidades
prisionais que não garantem o mínimo em relação à água, sabonete, itens básicos
para que a população se previna.
E havendo essa contaminação, ocorre a contaminação em massa,
que é o que temos visto.Quase metade das pessoas nas unidades que são testadas
estão contaminadas ou já estiveram contaminadas.
A questão para pensarmos e evoluirmos enquanto sociedade,
enquanto Estado brasileiro, é esse pensamento do desencarceramento hoje.
Principalmente nessas condutas que não são praticadas com grave ameaça ou
violência, principalmente no caso do tráfico, do fruto. Temos que ter outro olhar
em relação a essas medidas.
Quando falamos de um período tão complicado como esse que
estamos enfrentando na pandemia, é necessário um olhar mais fraterno. Mais
solidário. E um entendimento melhor dessa situação que vem ocorrendo hoje e que
vem, infelizmente, agravando a situação daquele público que já era mais
vulnerável, como acontece com as pessoas presas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho