quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Como a guerra às drogas devora os pobres

Segundo novo relatório da ONG Health Poverty Action, a proibição alimenta a pobreza e a criminalidade em lugares como Brasil e Índia.

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Por JS Rafaelli; Traduzido por Marina Schnoor

Em Nova York, o julgamento do chefão de cartel Joaquín “El Chapo” Guzmán está entrando em seu terceiro mês. A história de El Chapo é cheia de negócios de milhões de dólares, fugas mirabolantes de prisões e, claro, violência e corrupção características do comércio ilegal de drogas.

Mas o julgamento também aponta para uma estranha dicotomia em como falamos sobre a guerra às drogas. Ao olhar para os EUA e Europa, vemos como a proibição de drogas afeta muito mais comunidades marginalizadas e minorias raciais. Ainda assim, quando falamos sobre drogas no sul global (o que as pessoas costumavam chamar de “Terceiro Mundo”), a mídia se foca em chefes poderosos como El Chapo e Pablo Escobar, esquecendo que a maioria dos empregados e afetados pelo comércio de drogas são algumas das pessoas mais pobres do mundo.

Na verdade, o que fica cada vez mais claro é que a proibição internacional de drogas é o maior combustível da pobreza global. Semana passada, a ONG Health Poverty Action (HPA) divulgou um relatório observando o tráfico de drogas no Brasil e Índia. O documento explorou duas frentes: como gangues de traficantes tomaram as favelas brasileiras e como a produção ilícita de ópio formou uma economia alternativa no norte rural da Índia.

“Venho trabalhando em grandes campanhas de desenvolvimento há anos – cancelamento de dívidas, justiça comercial, AIDS; todas as coisas de que ONGs falam. Mas a maioria desses movimentos, mesmo fazendo o bem, eram campanhas pensadas no norte global, depois exportadas”, diz o CEO da HPA, Martin Drewry. “Aí um grupo de líderes políticos da América Latina veio para Londres e virou tudo de cabeça para baixo. A prioridade deles é lutar para acabar com a proibição das drogas – como uma questão de pobreza e desenvolvimento global! É nisso que eles querem que nos foquemos. Eles colocam isso na frente de muitas das nossas ideias de comércio injusto, evasão fiscal e mudanças climáticas. Foi um momento de lâmpada na cabeça.”

À primeira vista, ver a proibição de drogas como igual a, digamos, a estrutura do comércio mundial em termos de desenvolvimento global pode parecer exagero. Mas olhe os números. Lutar a guerra às drogas custa ao mundo US$ 100 bilhões por ano apenas em policiamento – e isso nem leva em conta os custos absorvidos em saúde pública, renda não-taxada e desperdício de potencial humano. O total anual do orçamento de ajuda global é de US$ 146 bilhões. Coloque esses números lado a lado e a escala da questão começa a ficar clara.

O mercado ilícito de drogas é a galinha dos ovos de ouro da corrupção criminal internacional. Nenhum outro ramo da criminalidade tem o potencial de gerar a renda necessária para a corrupção endêmica e industrializada da polícia e políticos. No sul global, segundo o relatório da HPA, isso desestabiliza estados inteiros, destruindo o funcionamento básico do governo enquanto esvazia camadas das instituições da sociedade civil. Mais amplamente, você pode ver esses efeitos nas guerras civis colombianas financiadas pela cocaína como as FARC até as fronteiras sem lei da China e Myanmar, onde contrabandistas de anfetaminas e heroína formaram estados paralelos.

Martin Drewry destaca essas questões básicas. “Muitos desses são países pobres em recursos, onde o comércio de drogas forma grandes seções da economia – tudo isso sem pagar impostos. E enquanto os governos estão ocupados, basicamente lutando um conflito armado contra sua própria população, eles não estão fornecendo serviços básicos como saúde, educação e infraestrutura.”

E o problema vai mais fundo que essa análise ampla. Uma das coisas mais interessantes do relatório da HPA é que ele expande a conversa para além de como “países produtores”, como a Colômbia e Afeganistão, ficaram presos na guerra às drogas para atender as necessidades de consumidores ocidentais. O documento também explora como o comércio de drogas funciona dentro dos países do sul global.

“Há um círculo de pobreza que se autoperpetua", diz Drawry. "As pessoas se envolvem com drogas para ter acesso a coisas essenciais e básicas da vida porque não têm outras opções. Aí elas são presas e suas chances na vida ficam ainda mais prejudicadas. Então há famílias inteiras onde esse ciclo vem sendo passado de uma geração para a seguinte. Uma garota em São Paulo nos contou como teve que começar a vender drogas porque a mãe tinha sido presa, e ela precisava sustentar as irmãs mais novas. Ela tinha 12 anos. Sessenta e quatro por cento das mulheres nas prisões do Brasil foram presas por ofensas relacionadas a drogas.”

Os dados da Índia também enfatizam como mulheres comandam plantações de ópio em pequena escala porque essa é uma fonte de renda flexível que elas podem ter enquanto cuidam de deveres domésticos mais tradicionais e sua educação. Isso as deixa vulneráveis para exploração de gangues criminosas e para o assédio constante da polícia.

Crucialmente, a natureza particular do comércio de drogas tem como alvo os mais pobres de uma maneira especialmente perniciosa. “Os caras no topo dessas gangues nesses países podem pagar subornos e geralmente têm poder de fogo para se proteger", diz. "Mas os governos ainda lidam com uma pressão extrema dos EUA para parecerem 'duros com as drogas', então a polícia e o exército precisam mostrar atividade – e o machado inevitavelmente cai sobre os mais pobres."

O relatório é enfático que seu pedido de legalização das drogas é só o primeiro passo; o mais importante é a natureza da regulamentação das drogas. Drewry terminou nossa conversa insistindo que simplesmente entregar o comércio de drogas para multinacionais não vai ajudar os pobres. "É preciso envolvimento sério e transparente dos governos", diz. ˜Não há um modelo padrão para todos os casos, mas iniciativas como garantir emprego na indústria legal visando aqueles já envolvidos, e limitar a formação de monopólios, como está sendo tentando na Califórnia e Bolívia, com certeza são positivas. Tem até uma oportunidade aqui – temos a chance de criar um setor legítimo inteiramente novo de base. Com o tempo, isso pode até servir como modelo para outras partes das economias em desenvolvimento que sofrem com corrupção séria.”

O sistema atual de proibição de drogas é um combustível crucial da pobreza global. Uma visão de futuro alternativo em que um mercado legal regulado de drogas se torna um modelo para abordar a corrupção e aliviar a pobreza é particularmente inspirador.

E isso também pode servir como um lembrete de olhar menos para o chefe de drogas bilionário El Chapo e mais para o garoto miserável de Badiraguato, no México. É preciso mudar a lei agora para proteger outras crianças pobres de dar os primeiros passos nesse mesmo caminho.


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