Primeiramente, sim, a opinião é sua, o facebook é seu, e
você pode postar o que quiser nele.
Foto - Acre da zueira |
Ninguém está te proibindo de sentir
compaixão, medo, consternação. Nada te impede de valorizar tanto a vida das
vítimas francesas quanto das vítimas de tantos outros crimes (e se você faz
isso, então não tem motivo pra se preocupar com as críticas à solidariedade
seletiva) e é claro que você pode e deve se preocupar com os atentados de
ontem, porque as repercussões serão globais. Acredite, ninguém quer que você
ignore os ataques da França, até porque quem faz essas críticas geralmente
conhece a sensação de ter suas próprias tragédias ignoradas. Não se trata de
promover alienação, e sim de pensar criticamente. Em outras palavras, o que as
pessoas devem se perguntar é o porquê de algumas dores te parecerem maiores do
que outras.
Todos deveriam, em qualquer situação, se perguntar quais as
raízes das suas ações e sentimentos. O que você pensa e sente não acontece por
mágica ou pela sua essência nata. Não existe "porque sim". Se você se
sente mais comovido pelas mortes na França do que no Brasil, no Líbano ou na
Síria, existem razões pra isso, e te faria muito bem saber exatamente quais são
elas. Talvez seja porque você tem parentes franceses ou tenha passado bons
tempos em Paris, e sente um carinho mais especial por aquela cidade e seus
habitantes do que por outras cidades e pessoas (e isso significa que o seu
#somostodoshumanos é menos humanista do que você pensa); talvez seja porque
você saiba o nome de cidades francesas, conheça palavras em francês, musicas
francesas, arte francesa, queijos e vinhos franceses, ao passo que não saiba
muita coisa sobre a vida e cultura de outros países, fazendo com que os franceses
sejam mais concretos do que esses outros povos confusos e abstratos dos quais
você nada sabe, ou só sabe coisas negativas (e esse é o sistema de
hierarquização de povos que possibilitou o colonialismo e alimenta o racismo
até hoje); ou talvez você apenas esteja reagindo ao grande movimento de comoção
que a mídia promove em relação à França. Talvez haja outras razões (e eu gostaria muito de saber quais são).
Em qualquer caso, é importante pensar sobre as razões do seu
sentir, porque isso te dirá muito sobre quem você é. Caso você se sinta
incomodado com a resposta, ao invés de reagir como se estivessem roubando a sua
liberdade de expressão, talvez a atitude mais inteligente seja repensar as suas
razões, pensar sobre os questionamentos que são feitos sempre que uma causa
mainstream ofusca as bandeiras levantadas por minorias historicamente
oprimidas, investigar-se.
Pergunte- se: quantas palavras, músicas, filmes, cidades,
livros e nomes de franceses você conhece? Quantas vezes você imaginou Paris como
destino de uma viagem dos sonhos? Quantas matérias você leu sobre os atentados
de ontem e o episódio Charlie Hebdo? Então, pergunte-se: quantas cidades,
músicas, filmes, livros e nomes vocês conhece sobre todos os países da África e
Oriente Médio somados? Se o resultado te parecer desigual, essa pode ser uma
razão pra você sentir mais compaixão pelos europeus do que por todo o
"resto do mundo", e talvez a "sua opinião" não seja assim
tão "sua", afinal.
Isso se chama autocrítica, e é o caminho mais seguro e
fundamental pra começar a entender e criticar o mundo ao seu redor.
Portanto, ao invés de dizer "o facebook é meu e eu
posto o que eu quiser", ou de sentir-se atacado por "fiscais de
compaixão", simplesmente ouça a pergunta que está sendo feita: por que
você se sente impelido a colocar a bandeira francesa no seu avatar e não sente
a mesma vontade de mostra a sua solidariedade pelos negros mortos pela pm
brasileira, ou não vestiu a bandeira do Líbano quando ocorreu um atentado do
ISIS por lá essa semana?
Talvez você não saiba a resposta, e talvez a pergunta te
pareça um ataque. Tudo bem, questionar-se é um processo confuso, e a sensação
de não ter total controle sobre o que você sente pode parecer muito com a
sensação de afogar-se. As nossas vontades e sentimentos, muitas vezes, obedecem
razões que a nossa própria razão desconhece. O único jeito de entender as suas
razões, as origens e consequências da sua compaixão, é questionar-se. Talvez,
na sua boa intenção, você esteja servindo a um projeto de acirramento de
tensões muito útil tanto para a extrema
direita xenófoba ocidental quanto pra grupos extremistas como o ISIS (sobre
isso, talvez valha a pena ler o post que fiz sobre Charlie), e eu tenho certeza
de que não é isso que você quer.
Então, pelo seu bem, e pra que a sua solidariedade faça mais
bem do que mal, se questione e, caso chegue a alguma conclusão, por favor me
conte: por que você escolheu se solidarizar pela França e não pelos países em
que ela promove genocídios, ou pelas vítimas francesas e não pelas vítimas do
nosso e de outros países?
Via - Descolonizações
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