segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Breve perfil de brasileiros ilustres – D. João VI e o traficante de escravos

O Príncipe Regente enfiou a mão no bolso e tirou um pacote engordurado. Com olhos gulosos, abriu o pacote e admirou o conteúdo, um belo frango assado. O Príncipe Regente arrancou uma das coxas com a mão direita e mordeu-a deliciado. Gotas de gordura escorreram pelo queixo proeminente do Príncipe Regente. Mastigando feliz o primeiro dos seis ou sete frangos do dia, o Príncipe Regente limpou os dedos no casaco e suspirou de satisfação. O Príncipe Regente chupou o osso da coxa, atirando-o em seguida pela janela da caleche.


Por Sebastião Nunes

O Príncipe Regente enfiou a mão no bolso e tirou um pacote engordurado. Com olhos gulosos, abriu o pacote e admirou o conteúdo, um belo frango assado. O Príncipe Regente arrancou uma das coxas com a mão direita e mordeu-a deliciado. Gotas de gordura escorreram pelo queixo proeminente do Príncipe Regente. Mastigando feliz o primeiro dos seis ou sete frangos do dia, o Príncipe Regente limpou os dedos no casaco e suspirou de satisfação. O Príncipe Regente chupou o osso da coxa, atirando-o em seguida pela janela da caleche.

O Príncipe Regente arrancou a outra coxa do frango e, ao mordê-la, deu um tapa na testa com a mão engordurada que segurava a coxa do frango.

– Virgem Maria! – exclamou ele, lembrando-se de repente. – E não é que eu tenho uma audiência com Elias António Lopes? Que memória a minha!

Botando a cabeça para fora, ordenou ao cocheiro que voltasse ao suntuoso palacete do paço de São Cristóvão, que mais tarde se chamaria Quinta da Boa vista, que mais tarde abrigaria o Museu Nacional e que dois séculos mais tarde seria destruído por um incêndio catastrófico, pavoroso, irreparável.



ELIAS ANTÓNIO LOPES

Baixo e atarracado, Lopes era a imagem do aristocrata português no Brasil, um dos muitos que enriqueceram traficando escravos. Comprara diversas propriedades no Rio de Janeiro e, pensando numa morada digna de sua riqueza e de sua descendência, construiu o palacete em São Cristóvão, que mais tarde doou ao Príncipe Regente, que mais tarde o chamaria Quinta da Boa vista, que mais tarde abrigaria o Museu Nacional, que mais tarde seria destruído por um incêndio catastrófico.

Quando entrou no palacete, o Príncipe Regente já encontrou à sua espera o rico traficante. Esparramado numa poltrona da antessala, direito adquirido por méritos de aristocrata e de doador da bela moradia, Lopes fumava grosso charuto.

O Príncipe Regente estendeu a mão engordurada que o visitante beijou, sentindo nos lábios e no nariz o gosto e o cheiro de frango assado.

– Por aqui, tenha a bondade – disse o Príncipe Regente com intimidade, conduzindo o traficante para o gabinete principal.

A porta estava aberta. Lá dentro, Carlota Joaquina remexia nas gavetas.



A PRINCESA CONSORTE

Apanhada em flagrante, a Princesa não se abalou. Empertigada, esperou a entrada do traficante e do marido, que não via há semanas.

Como se tivesse dormido com ela, o Príncipe Regente limitou-se a saudá-la com um muxoxo, indicando depois uma poltrona ao traficante.

Depois de sentar-se, Lopes tirou do bolso um lenço, com o qual esfregou os dedos minuciosamente, cheirando-os depois. Pareciam limpos.

O Príncipe Regente estava, no entanto, incomodado com a presença da Princesa. Não preferia ela morar numa vila em Botafogo, longe dele? Não vivia ela escrevendo ao papá e à mamá, senhores da Espanha, pedindo que o destronassem e a nomeassem regente do Brasil? Não era ela mal falada por gregos e troianos, que a culpavam de eternas ingerências no governo e na nomeação de preferidos?

Vendo que ela não se retirava, o Príncipe Regente decidiu-se pela diplomacia.

– Como tens passado, Princesa?

– Muito bem – respondeu ela. – Apenas me queixo de solidão.

– Como de solidão, se em Botafogo tens tudo de que precisas?

– Lá tenho apenas uma casa e amigos fiéis – retrucou ela. – E isso é bem pouco perto do que almejo.

– Bem sei o que almejas – ironizou o Príncipe Regente. – Mas o que almejas é impossível. Poderias, pois, retirar-te?

Bufando, a Princesa saiu a trote, batendo a pesada porta.



O PRÍNCIPE E O TRAFICANTE

D. João VI suspirou aliviado, assim que viu Carlota Joaquina pelas costas. Meteu a mão no bolso e, relutante, tirou de lá o pacote engordurado. As asas do frango pareciam apetitosas. Arrancou uma, que mordeu com satisfação.

– Está servido? – perguntou a António Lopes.

– Muito obrigado, senhor – respondeu educadamente o traficante. – Almocei não faz uma hora. Estou satisfeito.

O Príncipe Regente mastigava deliciado, gotas amareladas escorrendo-lhe pelo queixo gorducho. Passou a mão livre pelo queixo e a esfregou no casaco.

– Para que me queres? – perguntou ao traficante.

– Senhor, tenho um apelo a vos fazer – principiou Lopes.

– Diga.

– Gostaria muito de ser nomeado Comendador da Ordem Militar de Cristo.

– Pedes pouco, em vista do palacete que me doaste.

– Além disso – prosseguiu Lopes diante da boa acolhida –, pediria ser agraciado tabelião e escrivão da Vila de Parati.

– Terei o maior gosto em servir tão nobre e prestativo cortesão – respondeu com um sorriso o Príncipe Regente. – Mais tarde lhe farei outras benevolências.

– Fico eternamente agradecido, Senhor – respondeu o traficante. – No caso de haver precisão de alguns pretos e pretas para o serviço doméstico, é só pedir. Terei a maior honra em servir Vossa Senhoria.

– Por enquanto não, caro amigo – retrucou o Príncipe Consorte, pilheriando em seguida. – Só espero que este palacete não venha a incendiar-se. Principalmente se, no futuro, vier a se tornar importante museu nacional.

– Que Deus nos livre e guarde de tal tragédia, senhor – disse Elias António Lopes benzendo-se. – De minha parte nada tenho a temer, já que embarcar e vender preto não é pecado.

Via Jornal GGN

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