Para um país no qual a memória histórica é algo sagrado, o
Chile guarda viva a presença de Neruda, como conta Franco López, chileno há
oito anos no Brasil e pesquisador em América Latina: "Neruda é uma
referência para qualquer chileno, algo que você vai aprender desde pequeno.
Qualquer criança com cinco, seis anos no colégio vai estar recitando um poema
de Neruda, vai conhecer a poesia e faz parte da nossa memória histórica".
Até hoje, a causa de sua morte não é certa. Ele morreu doze
dias após o processo de golpe dos militares. A versão oficial alega que tenha
sido causa natural, em decorrência de um câncer de próstata que o poeta
carregava. Para muitos chilenos, porém, permanece a ideia de que ele foi
envenenado pela ditadura neoliberal de Augusto Pinochet. Seu corpo já foi
exumado quatro vezes.
Durante sua militância política, Neruda compôs a chamada
‘Geração de 1938’ e integrou as fileiras do Partido Comunista, em busca de uma
sociedade mais justa e que conseguisse fazer uma transição para o regime
socialista. Poeta engajado, muitos mitos também foram criados em torno de seu
trabalho. Um deles se refere à participação do chileno no chamado Realismo
Socialista, corrente artística da então União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) entre as décadas de 1930 e 1960.
O pesquisador em literaturas hispânicas e assistente de
pesquisa na Yale University (EUA), Gabriel Lima, explica, apesar da comum
associação, ela não é correta. "Neruda, já nos anos 60, fez um balanço
crítico das atividades do stalinismo na União Soviética e sempre se colocou contra
a doutrina do realismo socialista que preconizava uma utilização da arte como
forma de propaganda política", conta.
Amor e política
Neruda é muito conhecido por suas obras que versavam sobre o
amor, mas, seu trabalho vai além disso. Em uma época na qual a literatura
sul-americana ainda era marcada por muitos regionalismos, ele demonstra um
conhecimento grande sobre a poesia europeia e ajuda na renovação do verso na
América Latina. Sua obra é dividida entre o amor e a política.
"Ele participa de um processo de construção da
identidade latino-americana que vai ser fundamental para todos os escritores
que virão depois", explica Lima.
Uma de suas obras mais conhecidas é Canto Geral, publicada
em 1950 e escrita em meio a Guerra Fria e um contexto de perseguição aos
comunistas em diversos países, inclusive no Chile. "Nela, ele canta o
Partido Comunista chileno, a luta dos trabalhadores espanhóis, a Revolução
Russa e inúmeros processos de luta popular na América Latina, então diria que
essa é a obra mais importante do ponto de vista político e literário".
Contradições
Assim como muitos escritores brasileiros, Neruda também é
apontado por carregar contradições em sua obra. Uma das principais delas diz
respeito às mulheres e a forma como são abordadas nos seus escritos. São versos
como:
Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
pareces-te com o mundo na tua atitude de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.
Trecho do poema "Canto de mulher" (1924)
Desde a década de 1990, porém, a crítica literária acompanha
os avanços da sociedade e tem se preocupado, cada vez mais, com questões
ligadas às mulheres.
"A crítica aponta uma certa idealização excessiva da
figura da mulher e uma delegação à mulher do prazer sexual do homem, a
atribuição a mulher de papeis que sejam mais significativamente ligados ao
prazer sexual do que outra coisa. Existem esses aspectos problemáticos na
poesia dele, o que hoje vem sendo discutido como na obra de muitos escritores.
A gente sabe que todos os seres humanos são repletos de contradições.
Legado
Lado a lado com suas contradições, Pablo Neruda deixou mais
do que uma herança intelectual para a literatura latino-americana. Aos amantes de
sua obra, ou admiradores de sua trajetória profissional, a afirmação de que as
sociedades atuais têm muito a aprender com seu legado é comum.
"Fica o legado do Neruda tanto quanto ativista político
quanto como poeta para todos nós que hoje estamos enfrentando processos de
crescimento do ódio na América Latina, de ameaças, de governos
antidemocráticos. Neruda, pouco antes de morrer, escreveu "Yo no voy a
morirme, salgo ahora, en este dia lleno de volcanes, hacia la multitud, hacia
la vida" (saio do meu leito para a vida, para as multidões)", opina
Lima.
O chileno Franco López também relembra a atualidade de
Neruda. "É alguém que sempre está presente, que eu particularmente
identificaria como um latino-americanista. Tem um poema muito interessante que,
a partir da chegada de Hugo Chávez no poder, diz que a cada cem anos Simón
Bolivar renasce nos povos."
Hoje, o Chile, assim como outros países da América Latina,
vive uma onda conservadora sob o governo de Sebastián Piñera. Político de
centro-direita, ele interrompeu uma trajetória de dez anos de governos
progressistas no país.
Simón Bolívar, citado no poema de Neruda, foi um chefe
político e militar líder das revoluções que levaram à independência de países
como Venezuela, Peru e Bolívia, ficamos com a esperança do poeta: “Desperto a
cada cem anos quando desperta o povo.”
Fonte: Brasil de Fato
Via - Portal Vermelho
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