Sugestão de Gilberto Cruvinel
Por Cláudio Soares
(*) Publicado originalmente no Jornal do Brasil
"Na próxima encarnação, vou ler meus livros como uma leitura
comum e interessada, e não saberei que nessa encarnação fui eu que os escrevi".
(Clarice Lispector)
O “MISTÉRIO CLARICE”
“No meio havia uma barata ou um anjo?”, perguntou Carlos
Drummond de Andrade no belo poema intitulado “Visão de Clarice”, que o Jornal
do Brasil publicou na capa do seu famoso “Caderno B” em 10 de dezembro, dia em
que Clarice completaria 57 anos. A escritora não leu, não leria, porque o poema
era uma homenagem: ela havia morrido no dia anterior. Como reiterava poeta
mineiro, Clarice vinha de um mistério e partia para outro. Não era preciso
compreendê-la, algo que talvez nos seja quase impossível, pelo enorme e não
menos misterioso fascínio que ela exerce. Quase quarenta anos depois, o
mistério e o fascínio não cederam um só instante.
PEDE-SE NÃO ENVIAR FLORES
Quando Clarice Lispector morreu na desorientada manhã de 9
de dezembro de 1977, a família e os amigos mandaram publicar nos jornais do Rio
de Janeiro, protocolarmente, um convite para o seu sepultamento que incluia uma
orientação bastante clara: “Pede-se não enviar flores”. Mas, Clarice adorava
flores (“… primavera: eu de preto, tudo de ouro, eu com uma flor no cabelo, tu
com mil flores nos cabelos e assim nos reconheceremos…”, escreveu Clarice em
uma crônica de 1967, aqui no Jornal do Brasil, onde manteve uma coluna entre
1967 e 1973). Como o dia seguinte era um sábado, dia sagrado para os judeus,
seu sepultamento foi transferido para a manhã do domingo, 11 de dezembro, no
Cemitério Comunal Israelita, do Caju. Mas, como dizia, Clarice adorava os
sábados e as flores.
LÍVROS-PÁSSAROS
Clarice nasceu na distante Ucrânia (o “celeiro da Europa,
pela fertilidade de suas terras), no ano de 1920, em uma aldeia que
praticamente não existe no mapa, Chechelnyk, chegando ao Recife com dois meses
de idade. Sua primeira língua era o português. Muitas pessoas pensavam que
Clarice falava diferente, com um certo sotaque bastante característico, porque
era ucraniana. Que nada, ela falava daquele jeito, porque tinha a língua presa.
A vida de emigrante ucraniana não lhe foi fácil. Além da família ser muito
pobre, sua mãe ficou paralítica por causa de complicações no seu parto. Quando
aprendeu a ler, Clarice, começou a devorar livros que ela achava, quando
criança, que nasciam, como pássaros e árvores. Era a sua fuga da realidade
difícil. Quando Clarice descobriu que livros tinham autores, ela soube que
também queria ser uma autora
“POBRE MENINA RICA”
Aos nove anos, ela produziu seu primeiro trabalho literário:
uma peça infantil intitulada “Pobre Menina Rica”. Seu primeiro conto, foi
publicado por Raimundo Magalhães Junior, editor da revista “Vamos Ler”. Clarice
tinha 14 anos. Raimundo, antes, quis se certificar que Clarice não o tinha
copiado de ninguém. Mas, antes de ler e escrever, Clarice já fabulava,
inventava histórias. Inventou certa vez uma história que nunca terminava.
Profissionalmente, sua estreia se deu em 1944 com o livro Perto do Coração
Selvagem. O último livro que lançou em vida foi A Hora da Estrela. As obras que
mais lhe impressionaram foi Crime e Castigo, de Dostoiévski, e O Lobo da
Estepe, de Herman Hesse.
MÉTODO DE ESCRITA
Clarice explicava que o seu método de trabalho consistia em
anotar frases à medida que lhe vinham à cabeça durante o dia. Depois, ela “cosia”
esses pensamentos numa segunda fase do trabalho. A primeira fase era a mais
divertida. A segunda, um saco. Trabalhava sentada numa poltrona com a máquina
no colo por causa dos filhos, já que não queria que tivessem uma mãe fechada
num quarto a que não pudessem ter acesso. Clarice, talvez poucos saibam, era
formada em Direito, mas ela logo se desiludiu da profissão e começou a
trabalhar no jornal “A Noite”, como repórter. Cobriu de tudo, menos crime e
sociais. Não assinava essas matérias.
HOSPITAL DO INPS
O diagnóstico foi câncer no ovário com metástase.
Tardiamente descoberto, já havia lhe tomado praticamente todo o corpo. Clarice
foi hospitalizada em 1 de novembro quando sofreu uma cirurgia na Casa de Saúde
São Sebastião. Como as despesas de hospitalização eram caras e a previsão de
tratamento longa, o Ministro da Previdência na época, Nascimento e Silva, amigo
de Clarice, assinou sua transferência para o Hospital do INPS da Lagoa, onde
deu entrada em 16 de novembro, permanecendo internada por 23 dias no quarto
número 600. Ajuda providencial, já que Clarice não tinha direito ao INPS pois
não descontava para a Previdência Social. No hospital, Clarice permaneceu sob a
responsabilidade da equipe chefiada pelo médico Luis Carlos Teixeira e esteve
acompanhada das irmãs Elisa e Tânia, recebendo visitas frequentes das amigas
Olga Borelli, Nelida Piñon e Ciléia Marchi. Em nenhum momento, a escritora
perdeu a lucidez e a esperança de que fosse ficar boa. Na madrugada de quinta,
dia 8, passou mal e precisou receber uma transfusão de sangue. Mas, não
resistiu às complicações da implacável doença, e às 10h30m, de 9 de dezembro,
sexta-feira, no Hospital da Lagoa, Clarice morreu.
LITERATURA FEMININA
Clarice foi sem dúvida alguma uma das maiores ficcionistas
da literatura brasileira. Veio de longe para criar a literatura feminina
(dificilmente feminista) no Brasil. Se outras escritoras lhe precederam,
nenhuma outra atingiu a dimensão literária e artística de Clarice. Afetou e
ainda afeta todas as escritoras que lhe sucederam. Viveu de maneira simples,
quase nobre, ocupando-se ela própria dos afazeres domésticos. Assistia novelas,
como qualquer outra dona de casa. Em 1976, quando recebeu o Premio Brasília
pelo conjunto da obra, disse: “Foi uma dádiva de Deus, através dos seres
humanos. Eu bem estava precisando desse dinheiro. Sinto-me um tanto humilde,
por não merecer tanto”.
A AVENTURA DE PUBLICAR
Para Clarice, publicar um livro era sempre uma aventura, não
pelo possível desinteresse do público pelas obras literárias mas pela
apropriação indevida de que se beneficiavam, sistematicamente, as editoras.
Dizia que as editoras deviam ser mais generosas, inclusive para receber os
novos talentos que surgiam e que os contratos prendiam o escritor, que em geral
desconhecia seus direitos. Ela mesma assinava cegamente os seus contratos.
Lembrava que seu primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem”, havia sido
recusado pela editora José Olympio, sendo publicado por uma editora pequena com
o seguinte contrato: “a autora não pagava nada, mas se houvesse algum lucro,
seria todo da editora”.
ROSA SILVESTRE
Cerca de 150 pessoas compareceram ao seu enterro. A
cerimônia foi simples. Clarice não era exatamente religiosa, por isso, a
família dispensou o ritual completo. Seu corpo foi inumado na sepultura 123,
fila G. O escritor Antonio Villaça lembrou que naquele mesmo dia, celebrava-se
o centenário da morte de José de Alencar (“Tu viverás, Ceci, tu viverás”). O
mesmo poderia ser dito de Clarice. Se a maioria das pessoas estão mortas e não
sabem (ou estão vivas com charlatanismo), com Clarice, aconteceu o contrário:
Tu viverás, Clarice, tu viverás! Clarice que sempre desejou não viver do
passado, que esperou ter sempre o tempo presente e, mesmo que ilusoriamente,
algo do futuro. Clarice que viveu com pressa, para que sua vida fosse eterna,
para que sua morte fosse, como ela mesmo disse, “um dos atos mais importantes
de sua vida”. Mas, como tudo isso tem tão pouca importância agora, Clarice. Já
que, como as rosas silvestres, mesmo morta, você exala uma alma tão viva.
Via - Jornal GGN
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