“Marielle é vítima da barbárie que ela dedicou a vida a
combater”, lamenta Ignacio Cano, doutor em sociologia e pesquisador do
Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj). Colega de militância da vereadora carioca, assassinada na noite desta
quarta-feira (14), ele defende que é preciso o esclarecimento rápido do crime
para que possa haver “alguma fé no sistema de justiça criminal e no Estado
democrático”.
“Todas as mortes têm o mesmo valor – a da Marielle a do
Anderson e todas as outras que acontecem no país a cada ano. Mas, se a morte de
uma pessoa com essa visibilidade ficar impune, o que poderemos esperar de
tantas milhares de mortes de anônimos que acontecem no estado do Rio a cada
ano? Se essa morte não for esclarecida, a degradação da confiança no Estado
será ainda maior”, alerta, em entrevista ao Portal Vermelho.
Mulher negra, cria da Maré, defensora dos Diretos Humanos,
socióloga e vereadora pelo PSOL. Assim Marielle Franco se descrevia em seu
perfil no Twitter. Nomeada no fim do mês passado como relatora da Comissão da
Câmara de Vereadores do Rio, criada para acompanhar a atuação das tropas na
intervenção federal, ela foi morta a tiros dentro de um carro, na região
central do Rio. O motorista do veículo, Anderson Pedro Gomes, também foi
baleado e morreu.
Segundo a polícia, um outro carro emparelhou com o veículo
em que Marielle estava e efetuou ao menos nove disparos em sua direção. Ela
encontrava-se no banco de trás, foi atingida por quatro projéteis e faleceu na
hora. Uma assessora da vereadora, que também estava no automóvel, teve ferimentos
leves. Os criminosos fugiram sem levar nada. O quadro faz com que a polícia
trabalhe com a ideia de que se tratou de uma execução.
Representante dos que não têm voz
“Para nós, é um momento muito doloroso, ela era uma
companheira de longa data, de muita militância juntos, então esse é um dia
devastador”, diz Ignacio Cano. Para ele, contudo, a morte prematura da
vereadora é um golpe, especialmente, para uma parcela da população
particularmente oprimida, que se via representada por Marielle.
“Ela era negra, favelada, mulher – um grupo que não tem voz
pública. E ela deu voz a esse grupo, que agora ficará privado dessa voz da
maneira pior possível. Então é um dia de muita tristeza, para o Rio de Janeiro,
para os Direitos Humanos e para qualquer um que acredite na democracia e na
justiça e que pretenda lutar contra a barbárie”, afirma.
O sociólogo é cauteloso ao ser questionado sobre indícios de
que se tratou de um crime político. “É uma hipótese, não tenho dúvida. Mas
temos que aguardar e cobrar as investigações. É preciso que as investigações
andem rápido”, defende. “É um contexto anômalo e a responsabilidade agora é
federal, então o governo federal tem que apresentar uma resposta logo sobre
esse crime”, completou.
A referência é ao fato de que o homicídio ocorreu num
momento em que o estado do Rio passa por uma intervenção militar federal. Ao
comentar a morte da vereadora, o ministro da Justiça, Torquato Jardim, disse
que ela não terá impacto na intervenção. “Foi uma tragédia, mais uma tragédia
diária no Rio de Janeiro. Lamentável”, declarou.
“Para eles, é mais uma tragédia, para nós, que convivíamos
com ela, não é mais uma tragédia. De qualquer forma, o Estado tem a obrigação
de esclarecer todos os homicídios. A gente quer passar de uma taxa de
esclarecimento que hoje é inferior a 8% dos casos, para uma taxa civilizada, em
que você consiga esclarecer pelo menos mais da metade dos crimes de homicídios.
Há países que conseguem isso. A nossa realidade é complexa, mas é uma cobrança
legítima e necessária exigir que o Estado consiga identificar e processar a
maioria dos assassinos. Sem isso, a esperança de acabar com a barbárie será
remota”, diz Cano.
A morte de Marielle reforça o que dizem os números da
violência no Brasil. De acordo com o Atlas da Violência 2017, por exemplo, de
cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. E, segundo a Anistia
Internacional, o Brasil é um dos países com o maior registro de mortes de
ativistas dos direitos humanos. “É um retrato muito perturbador”, avalia o
sociólogo.
No caso de Marielle, nem sua posição de destaque a afastou
das estatísticas: “Era uma mulher, negra, favelada, que a princípio tinha
muitas dificuldades para atingir um lugar de visibilidade, uma expressão
pública. Mas, quando ela consegue chegar lá, nós esperávamos que ela estivesse
protegida, justamente pelo cargo que exercia. Mas descobrimos que não era bem
assim, que ela continuava com a vulnerabilidade de sempre. Isso é uma tragédia
e temos que nos mobilizar para que isso não continue assim. Para que pessoas
que tenham essa origem não continuem tendo uma probabilidade de morte superior
à das pessoas que têm origem social mais favorecida”, afirma.
Intervenção, uma operação político-eleitoral
Segundo o professor da Uerj, que é crítico da presença do
Exército nas ruas do Rio, a morte da vereadora do PSOL mostra que o Estado
precisa de investigação, não de tanques. Na sua avaliação, a intervenção é
“claramente uma operação política”.
“A gente chama de autointervenção, porque é o PMDB do Rio,
com o PMDB de Brasília, tentando arrumar uma bandeira eleitoral para esse ano.
Então, num momento em que tinham dificuldades para abraçar a bandeira da
reforma da Previdência, optaram por içar a bandeira da segurança como uma
bandeira política”, opina.
De acordo com ele, se o governo federal realmente tivesse
vontade de melhorar a segurança do Rio, havia outras medidas a serem tomadas,
que não envolvem o Exército. “Podia criar uma força-tarefa de investigação, por
exemplo. A morte da Marielle mostra, como tantas outras, que o que a gente
precisa é de investigação. A gente não precisa de soldados nas ruas, de tanques
na frente das comunidades. A gente precisa de investigação para identificar os
responsáveis pelos crimes violentos”, aponta.
Cano prevê que a ação militar provavelmente não vai ter
nenhum impacto positivo. Ele destaca que operação anteriores do Exército não
surtiram efeito, além de que tiveram custos muito elevados. “Mas é essa aposta
numa recepção popular favorável do Exército como um poder moderador, um braço
forte, que faz com que os governantes, vira e mexe, recorram a esse
expediente”, lamenta.
O sociólogo sublinha ainda que o problema da violência não
está localizado no Rio, pelo contrário. “Basta lembrar que o Rio é o 11º estado
do Brasil em taxa de homicídio e mortes violentas. Ou seja, tem dez estados em
situação mais dramática. Se eles quisessem ajudar, há outros mecanismos que não
colocar o Exército numa função que não é dele.”
Uma agenda agressiva de segurança
Ignacio Cano se diz muito preocupado com falas e sinalizações
vindas de altas autoridades federais. Ele mencionou como exemplo o fato de o
comandante Eduardo Villas Bôas ter defendido mudanças nas regras de engajamento
do Exército, permitindo a um militar matar pessoas que estejam armadas nas ruas
do Rio. O sociólogo também se referiu à mudança na legislação que faz com que
crimes de homicídio cometidos por militares em operações de segurança pública
sejam julgados pela justiça militar e não mais pela justiça comum.
“Há todo um projeto político para transferir uma
responsabilidade crescente da segurança pública para as mãos do Exército e de
uma forma cada vez mais violenta. Não à toa há deputados promovendo o que
chamam de Lei do Abate, para poder matar pessoas só porque estejam armadas,
mesmo que nesse momento não estejam ameaçando ninguém. Tem também a tentativa
de conseguir um mandado de busca coletivo, colocando sob suspeição todas as
comunidades”, enumera.
Para Cano, este é um projeto “extremamente perturbador”, que
lembra a ele, inclusive, o cenário vivido na Venezuela, antes do Caracazo. Na
ocasião, um protesto popular contra o pacote neoliberal do governo foi
duramente reprimido pelo Exército e pela polícia, em 27 de fevereiro de 1989,
com um saldo de centenas de mortos.
“Até agora, isso tem ficado na retórica, e esperamos que
continue lá. Mas há um grupo que tem uma agenda extremamente agressiva de
segurança e essa agenda seria terrível para os moradores do Rio de Janeiro.
Vamos torcer e nos mobilizar contra isso”, encerra.