Documento, assinado por 152 arcebispos e bispos da Igreja
Católica, acusa o presidente de “incapacidade e inabilidade” para enfrentar as
múltiplas crises vividas pelo País.
Nada menos que 152 arcebispos e bispos da Igreja Católica
assinaram um dos mais fortes ataques ao governo Jair Bolsonaro. O documento,
intitulado Carta ao Povo de Deus, acusa o presidente de “incapacidade e
inabilidade” para enfrentar as múltiplas crises vividas pelo País – política,
econômica, social e sanitária.
“As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para
melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que
precarizaram ainda mais a vida do povo”, aponta o texto. “É insustentável uma
economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos
grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.”
Os bispos também denunciam o viés genocida do governo,
agravado pela política ultraliberal do Ministério da Economia, sob a tutela de
Paulo Guedes. “O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana
e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma ‘economia
que mata’ (…), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço”, reforça o
texto.
A Carta ao Povo de Deus seria publicada na última quarta-feira
(22) pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Porém, como não
houve consenso sobre o teor do documento, o documento veio a público como uma
manifestação coletiva dos 152 arcebispos e bispos – mas não um gesto
institucional da CNBB.
Leia abaixo a íntegra:
Carta ao Povo de Deus
Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do
Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em
comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no
exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos
pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus,
interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e
à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver
superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus.
Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no
mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do
Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de
amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a
favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas
apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […]
(Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de
que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade
atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos,
ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de
Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de
uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização
do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua
história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser
atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem
precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate
sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente
da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise
política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à
prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais
diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar
propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em
favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta
sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não
comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se,
claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram
até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do
Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que
se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa
Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros,
garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um
desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não
podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas
à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da
Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações
ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente,
a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos
milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo
divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia
que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à
manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos
princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a
Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos
claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas
crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a
vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais
a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias,
mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres,
desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos,
afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum
e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que
privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande
maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa
humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma
“economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro
a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do
Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se
colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da
República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes
condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a
flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e
das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação,
como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia
também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela
educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como
inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação
e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação
de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância
pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na
desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença
pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e
mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da
Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação
do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares
dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão
adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos
pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País,
privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os
grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o
número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal
descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo
da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e
internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos
mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas,
quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e
o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais
atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram
medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e
econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há
poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no
legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre
outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de
leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de
oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional,
13/07/2020).
Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e
crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus
líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e
poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos
fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos
indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a
falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o
amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua
justiça?
O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso,
propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com
a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que
seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de
Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos
públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental,
com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e
saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente
“Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil
brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para
pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e
Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam
novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento
social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e
famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os
irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho
que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos,
para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et
Orbi, 12/4/20).
Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos
faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que
nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o
dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz”
(Rm 13,12).
O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face
e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm
6,24-26).