Um ano depois do Massacre de Curitiba, Beto Richa segue
impune. "Quando lembro daquele momento não vejo o rosto do soldado que
apertou o gatilho. Vejo a cara do Beto Richa atirando", diz servidor
atingido no rosto por uma bala durante manifestação no Centro Cívico.
O agente penitenciário paranaense Cláudio Franco tinha
acabado de completar 43 anos. Era o fim de abril de 2015 e ele tirava alguns
dias de folga do estressante trabalho no Complexo Médico Penal de Pinhais,
região metropolitana de Curitiba. Marcado para morrer por facções criminosas,
depois de ajudar a desbaratar um esquema de entrada clandestina de telefones
celulares e drogas no presídio, Cláudio pretendia se distanciar um pouco
daquele cotidiano e participar da queda-de-braço entre governo e servidores
públicos paranaenses que se arrastava desde o início do ano. “Eu participo de
todo evento que ameaça a minha categoria”, diz.
O período de folga, devido a dezenas de horas extras
trabalhadas acumuladas, coincidiu com a segunda investida em menos de três
meses do governador Carlos Alberto Richa (PSDB) ao fundo de previdência dos
servidores públicos do Paraná. Ao decidir participar das manifestações contra a
iniciativa do governador, Cláudio viu a discrição pela qual tanto zela em sua
vida pessoal ser arrastada para longe. Seu rosto ensanguentado, flagrado pelas
lentes do fotógrafo Giuliano Gomes logo depois de ser atingido por uma bala de
aço revestida de borracha disparada por um policial, transformou-se em um dos
símbolos da brutalidade da repressão ordenada pelo governo paranaense contra os
funcionários públicos na tarde daquele 29 de abril.
O tiro à queima-roupa do qual Cláudio foi alvo sintetizou a
covardia e a brutalidade da repressão perpetrada no Centro Cívico de Curitiba.
Pouco depois, entidades sindicais, movimentos sociais, jornalistas, advogados e
defensores dos direitos humanos no Paraná uniram-se no chamado Fórum de Lutas
29 de Abril. Em breve, a história também será publicada em livro pela editora
paulistana Veneta.
Era uma quarta-feira, mas desde o fim de semana anterior a
Polícia Militar vinha se preparando para uma operação de guerra. Centenas de
policiais foram levados de cidades do interior para a capital para cercar o
Legislativo estadual e impedir a entrada dos manifestantes. A medida era
amparada em um interdito proibitório concedido por um juiz local para que os
deputados estaduais pudessem consumar a estratégia de Beto Richa para ganhar
acesso a bilhões de reais depositados no fundo previdenciário dos profissionais
do serviço público. E assim obter recursos ante o iminente colapso financeiro
decorrente de seu primeiro mandato como governador. “Temo por um massacre”,
advertiu na ocasião o então líder da oposição a Richa, deputado Tadeu Veneri
(PT).
Colega de farda
Ao mesmo tempo em que centenas de pessoas acampavam na
região do Centro Cívico – professores em sua maioria –, milhares de outros
funcionários públicos passaram a ir diariamente à região para protestar.
Cláudio Franco entre eles. O agente é morador da região central da capital
paranaense, próximo do consultório onde oferece tratamento psicológico gratuito
a colegas de profissão, uma vez que o estado não proporciona atendimento
especializado aos expostos a esse tenso cotidiano profissional.
Além de agente penitenciário concursado, Cláudio Franco é
psicólogo e professor. Naquele dia, deixou sua residência logo cedo e perto das
9h chegou à Praça Nossa Senhora de Salette, epicentro dos protestos que
sacudiram Curitiba no primeiro semestre de 2015. A aglomeração aumentou com o
passar das horas e por volta das 14h30 mais de 20 mil pessoas encontravam-se em
frente à Assembleia Legislativa do Paraná, onde seria votado o projeto de lei
por meio do qual Beto Richa pretendia apropriar-se do fundo de aposentadoria
custeado pelos servidores públicos.
Cláudio foi para o protesto daquele dia vestindo uma farda
do Departamento de Execução Penal (Depen) paga do próprio bolso, uma vez que o
estado não fornecia novo enfardamento aos agentes penitenciários havia pelo
menos quatro anos. Mas nem a farda que poderia distingui-lo em meio à multidão
foi suficiente para inibir a truculência da PM do Paraná. Faltava apenas um
estopim para a consumação da tragédia. E veio, na forma da pressão de um
pequeno grupo de manifestantes às grades da Assembleia Legislativa, pouco antes
das 15h. Naquele instante, Cláudio encontrava-se perto do cordão de isolamento
estabelecido pela PM. Conversava com outros manifestantes e não se deu conta de
que a polícia havia partido para cima dos servidores.
As pessoas mais próximas saíram correndo desesperadamente
para escapar do avanço da PM. Uma senhora caiu no chão bem na frente de
Cláudio. “Ela ia ser pisoteada, então me aproximei para ajudá-la a levantar.”
Agachou-se, ergueu a mulher e uma pessoa que vinha correndo ajudou-a a se
afastar. Quando ia se levantar, Cláudio percebeu que seu par de óculos escuros
havia caído no chão. Ele pegou os óculos, colocou-os no rosto e, quando se
levantou com o objetivo de afastar-se, viu-se de frente para um policial da
Tropa de Choque com uma arma apontada para seu rosto. “Em nenhum instante
pensei que ele fosse atirar.
Achei que fosse me reconhecer como um colega de
farda. Afinal, ele pertence à mesma secretaria que eu.”
O momento seguinte foi de atordoamento. “Primeiro achei que
uma bomba tivesse explodido perto de mim e meus tímpanos tivessem estourado por
causa do deslocamento de ar”, relembra. Mas não se tratava de uma bomba. A bala
de aço revestida de borracha disparada pelo soldado da Tropa de Choque da PM
atingiu em cheio o lado esquerdo de seu rosto. O impacto o deixou desorientado,
fraturou seu maxilar superior e quebrou no meio um de seus molares. Fosse
munição real, a PM teria inadvertidamente prestado serviço às facções
criminosas interessadas na morte do agente penitenciário. Cláudio precisou de
duas cirurgias de reconstrução, ambas pagas com recursos próprios.
A cara do Richa
“Toda vez que me recordo daquele momento não vejo o rosto do
soldado que apertou o gatilho. Vejo a cara do Beto Richa”, afirma Cláudio, uma
das primeiras entre as centenas de vítimas daquela violência policial que só
cessou depois de duas horas, quando o procurador-geral do Ministério Público do
Paraná, Gilberto Giacoia, ladeado pelos promotores Olympio de Sá Sotto Maior e
Eliezer Gomes da Silva, telefonou para o então secretário-chefe da Casa Civil
de Richa, Eduardo Sciarra. No momento do telefonema, Giacoia, Sotto Maior e
Gomes da Silva estavam no Centro Cívico e testemunharam a ação desproporcional
da polícia. Naquela mesma noite, Giacoia convocou Sciarra e dirigentes
sindicais à sede do MP e adiantou que seria aberto um inquérito para apurar as
responsabilidades. O processo tramita na velocidade comum às ações judiciais
que apresentam tucanos como réus.
Trabalhando noite adentro, funcionários da prefeitura de
Curitiba tiveram dificuldade para concluir a angustiante tarefa de
contabilização dos feridos. Amigos, familiares, companheiros de trabalho e
dirigentes sindicais percorriam hospitais para localizar e verificar o estado
de saúde das vítimas, prestar alguma forma de ajuda ou manifestar
solidariedade.
Integrantes do governo do Paraná, por sua vez, responsabilizavam
os servidores públicos em greve na tentativa de culpar a vítima pela violência.
As cenas registradas eram fortes. Nenhum dos noticiosos televisivos
transmitidos em rede nacional na noite de 29 de abril de 2015 teve como se
omitir. A repressão rapidamente ocupou lugar de destaque nas capas dos sites
dos principais veículos de comunicação nacionais e internacionais.
‘Tudo bem, pai’?
“Meu celular começou a vibrar um pouco depois (do tiro)”,
relata Cláudio. “Era meu filho perguntando se estava tudo bem. Eu não queria
deixá-lo preocupado, respondi que sim e quis saber por que ele estava
perguntando. Ele respondeu: ‘Por isso’, e mandou uma foto junto na mensagem.
Era minha foto com o rosto todo ensanguentado. Circulou muito rápido. Eu só
soube como estava meu rosto quando vi a foto que meu filho mandou pra mim.”
Parte da mídia nacional, simpatizante do governador e de seu
partido, apressou-se na tentativa de encontrar alguma explicação que negasse o
que as imagens mostravam. Alguns compraram a versão oficial de “infiltração de
black blocs” entre os manifestantes. Outros falaram de “confronto”. O
“confronto” tinha de um lado servidores públicos desarmados e do outro tropas
armadas com fuzis, granadas, bombas e toda a tecnologia repressiva disponível. Mas
as imagens circularam o mundo e “falavam”. Nas primeiras horas da noite o
episódio já tinha nome e sobrenome. Para uns, o Massacre de Curitiba; para
outros, o Massacre do
Centro Cívico.
A sede da prefeitura de Curitiba transformou-se num
pronto-socorro improvisado pelo qual passaram 213 pessoas com algum tipo de
ferimento. Quarenta e três feridos em estado mais grave, muitos deles alvejados
em pontos vitais pelas balas emborrachadas, precisaram de transferência, 36
para o Hospital do Cajuru e sete para o Hospital do Trabalhador. As ambulâncias
tiveram dificuldade em chegar às vítimas, tamanho o bombardeio.
A truculência policial não poupou idosos, crianças nem
pessoas com deficiência. Sobrou até para um deputado e para um cinegrafista,
mordidos por cães da PM já dentro das dependências da Assembleia. Houve 25
soldados da PM atendidos pelo serviço ambulatorial da Casa, todos com sintomas
de intoxicação. Passaram mal depois de inalar o gás lacrimogêneo lançado por
seus colegas de farda. Pelo menos 13 pessoas foram detidas, entre elas um menor
de idade. O governo tentou, desde antes da repressão, rotular manifestantes
como “black blocs”, mas a alegação foi desqualificada pela Defensoria.
Pública
do Paraná.
Dados de um ofício entregue pela PM ao Ministério Público de
Contas do Paraná, quase um mês depois, proporcionaram dimensão não apenas do
massacre, mas de como o governo preparou-se para uma ação que só poderia
terminar em violência. A ação daquele 29 de abril contou com a participação de
1.661 policiais – 15% do contingente da PM de todo o estado concentrara-se ali.
Não faltam relatos de que criminosos aproveitaram para fazer festa em diversas
cidades do interior. Os policiais dispararam contra professores, alunos,
servidores públicos e outros manifestantes um total de 2.323 balas de aço
revestidas por borracha, 1.094 granadas de “efeito moral” e 300 bombas de gás
lacrimogêneo. Uma bomba a cada 24 segundos, nove granadas por minuto e um tiro
de bala de borracha a cada três segundos.
Parte desses artefatos foi lançada de um helicóptero da
polícia que sobrevoou a baixa altitude a Praça Nossa Senhora de Salette,
considerada o coração da política e da cidadania do Paraná. As despesas diretas
do governo com a operação totalizaram quase R$ 1 milhão. O dado leva em conta
apenas as munições empregadas na ação e as diárias extras pagas aos policiais
deslocados do interior – muitos depois obrigados a devolver ao governo o
dinheiro destinado a sua alimentação.
Nos dias que se seguiram ao massacre, uma campanha veiculada
pelo governo custou aos cofres paranaenses R$ 2,7 milhões, sendo que a RPC,
afiliada local da Rede Globo, ficou com nada menos que R$ 1,2 milhão (44,4%).
Ou seja, o governo que se propunha a impor perdas aos servidores, a pretexto de
reduzir despesas, gastou quase R$ 4 milhões em algumas horas de repressão e
numa campanha de publicidade destinada a justificá-las.
Blindagem
Na Justiça Militar do Paraná, o promotor Misael Duarte
Pimenta Neto recomendou em fevereiro o arquivamento do Inquérito Policial
Militar aberto com o pretenso objetivo de apurar as responsabilidades dos
agentes estatais envolvidos. Ao tentar empurrar para baixo do tapete as graves
violações cometidas pela polícia, Pimenta alegou que a operação da PM foi
“concluída exitosamente” e que as ações dos líderes dos protestos eram “coisa
genuinamente de facções radicais e regimes político-ideológico sectários e
corruptos”. A atitude do promotor causou desconforto entre integrantes do
Ministério Público e foi criticada até mesmo pelo líder da bancada do governo
na Assembleia, Luiz Cláudio Romanelli.
Sem educação
Tentativas de blindagem à parte, as escolhas e os atos de
Beto Richa como governador falam muito mais sobre sua visão para a educação
pública do que qualquer um de seus discursos de campanha. As promessas de
construção de novas escolas, de melhoria das instalações existentes, de
valorização do magistério, de implementação de tecnologias e de ações para
melhorar a qualidade do ensino no Paraná são palavras ao vento diante da
“pedagogia do porrete” e da “pedagogia das planilhas”, posturas essas muito
parecidas com as que levaram a ações executadas em outros estados por
brasileiros por governadores como Geraldo Alckmin, em São Paulo, e Marconi
Perillo, em Goiás – ambos do PSDB, como Richa.
“Trata-se da mentalidade de Estado mínimo, no sentido de
retirar a função social, a função coletiva do Estado e o Estado máximo para
beneficiar elites empresariais, políticas, econômicas e financeiras”, define o
professor Ricardo Costa de Oliveira, da Universidade Federal do Paraná.
Decorrido um ano do massacre, professores e funcionários da
rede pública estadual de ensino do Paraná ocuparão as ruas do centro de
Curitiba e sairão em passeata até o Palácio Iguaçu, sede do governo, onde
realizarão ato para marcar este “dia de luto e de luta”, na defesa de valores
frontalmente ameaçados pelo avanço conservador, como a democracia, a escola
pública e a valorização dos educadores.
Via – Pragmatismo político
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