Fernando Pessoa, como se sabe, não era um poeta português,
era vários poetas portugueses. Escrevia sob outros nomes, e a cada poeta
inventado, que chamava de heterônimo, dava uma biografia e um estilo diferente.
O que pouca gente sabe é que, pelo menos uma vez por ano, Pessoa reservava uma
mesa num café de Lisboa para reunir seu plantel, e servia bebidas e pastéis de
Belém para todos – que ninguém via, ou só ele via.
Os frequentadores do bar se espantavam com aquele homem numa
grande mesa vazia que falava sozinho enquanto bebia e comia. Não podiam saber
que Pessoa conversava com suas criaturas invisíveis, que comentavam a vida e os
tempos, e muitas vezes trocavam insultos, pois o único traço comum aos
heterônimos – Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares
– era que um não suportava o trabalho do outro. Pessoa não tomava partido nas
discussões, apenas recomendava tolerância e paz, enquanto comia todos os
pastéis.
Um dia, no meio de um desentendimento entre os heterônimos
sobre o papel da poesia na política, aproximou-se da mesa um homem que Pessoa
achou remotamente familiar. Talvez um colega de escola? O homem pediu para
sentar-se. Pessoa disse que todas as cadeiras estavam ocupadas, e o homem pegou
uma cadeira da mesa ao lado. Anunciou seu nome. Identificou-se como “um poeta
menor” e disse que lamentava não ter sido convidado para aquela reunião.
– Mas você não é meu heterônimo – protestou Pessoa.
– Não – disse o homem. – Você é meu heterônimo.
– O quê?!
– Eu inventei “Fernando Pessoa”, e vi minha criação
tornar-se mais conhecida do que eu. “Pessoa” todos conhecem. É o maior poeta de
Portugal. Eu, quem conhece?
Pessoa lembrou-se de onde vira aquela cara antes. Numa
obscura antologia de poetas provincianos, ilustrando um poema horrível.
Foi Álvaro de Campos quem expressou a perplexidade do grupo,
depois de alguns segundos de silêncio atônito diante daquela revelação.
– Quer dizer que nós somos invenções... de uma invenção?!
O homem explicou:
– Eu só inventei “Fernando Pessoa”. Ele inventou vocês por
conta própria. Eu, pobre de mim, não teria a capacidade. Mal posso com um
heterônimo, que não para de escrever. O que dirá de cinco.
Ricardo Reis virou-se para Pessoa, ou “Pessoa”, e protestou.
– E você, ó Pessoa. Não vai dizer nada? E essa confusão em
que nos meteu?
– Eu só estava pensando – disse “Pessoa”, pegando o último
pastel – que desta vez não vou ser eu a pagar a conta.
Via – Contexto Livre
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