Comissão de Assuntos Sociais do Senado pode votar na semana
que vem projeto que legaliza o uso terapêutico da cannabis.
Na atual legislação penal brasileira, portar ou fazer uso de
qualquer tipo de substância como são as chamadas “drogas ilícitas” –maconha,
cocaína, crack e outras– é sujeito a uma pena de até 15 anos de prisão em
regime fechado. A última mudança legislativa ocorreu em 2006, e o texto não
define com precisão deixando de forma subjetiva a autoridade policial como
responsável por definir se houve apreensão de algum “usuário” ou “traficante”,
mas chegou-se a pensar que isso levaria a descriminalização das drogas.
Entretanto, após 10 anos da aprovação desta legislação, o
encarceramento quase dobrou –passou de 401.200 pessoas presas para 726.700
pessoas presas em 2016, segundo dados do Ministério da Justiça. Atualmente, um
terço dos presos no país responde por crimes relacionados às drogas, segundo
levantamento do G1 com dados do Infopen. O estudo aponta que os crimes ligados
as drogas respondem por um terço da população carcerária do Brasil. No caso das
mulheres, a situação é ainda mais grave: 60% da população carcerária feminina
no Brasil está presa por algum crime relacionado às drogas.
É importante lembrar que antes mesmo das políticas
proibicionistas globais de Nixon, no Brasil –e no Rio de Janeiro mais
especificamente– já havia a repressão ao uso de maconha. Uma lei de 1830
proibia o uso do “pito do pango”, como era conhecido o “baseado”, para “negros,
mestiços e outros vagabundos” –mais uma prova de como o racismo está adensado
nas questões sociais do país há décadas. A própria palavra “maconha” é um
anagrama de cânhamo, fibra retirada da planta. Com o avanço da repressão ao uso
do cânhamo, as pessoas passaram a chamar o santo por outro nome e surgiu a
expressão maconha.
Voltando um pouco ao passado, havia uma lei no Brasil,
chamada de Lei da Vadiagem, na década de 1930, onde as pessoas eram obrigadas a
estar com sua carteira de trabalho ou seriam presas. Assim, isso funcionou como
uma cortina de fumaça, uma vez que também esta legislação foi utilizada como
uma ferramenta racista, tendo como objetivo público, a criminalização da
maconha, da capoeira e do samba, frutos da cultura das pessoas negras
sequestradas vindas de países da África e que foram escravizadas no Brasil.
Hoje o samba e a capoeira são patrimônios culturais
brasileiros e mundialmente conhecidos e reconhecidos como parte da vida das
pessoas, seja caminhando enquanto volta do escritório onde trabalha ou com o
som que vem pela janela nas tardes de domingo. Contudo, não houve mudanças
significativas com relação à maconha, que segue criminalizada e proibida,
especialmente para as pessoas negras e para os moradores das favelas e
periferias que sofrem todos os dias com tortura, tiroteios, desaparecimentos
forçados e os assassinatos que, em 2017, chegaram a mais de 63 mil pessoas,
segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em contraponto, a realidade da população de classe média
carrega uma grande quantidade de privilégios sociais, seja com relação ao uso
pessoal/recreativo, seja com os que precisam utilizar maconha medicinal.
Existem na cidade do Rio de Janeiro mais de 900 favelas, e as pessoas que fumam
um cigarro de maconha perto de suas casas em um destes lugares, caso sofram uma
“dura” ou batida policial, a primeira coisa que acontece é uma agressão, seja
verbal ou física por parte do agente de segurança. Nos locais frequentados pela
classe média, o máximo que acontece é pedir que se apague o seu baseado, e em
alguns minutos tudo volta ao normal.
No caso dos cultivadores, seja para uso como medicina ou
para romper sua ligação com as facções que “traficam” maconha, a realidade
segue por ruas diferentes para as quase 2 milhões de pessoas que vivem nas
favelas da segunda maior metrópole da América Latina e que têm as mesmas
necessidades.
Dos 18 projetos apresentados sobre o tema no Congresso
Nacional, apenas quatro apontam uma posição favorável pelo fim da guerra às
drogas e rumo à regulamentação da maconha. Nesta quarta-feira, 21 de novembro,
por pouco não foi votado o projeto de iniciativa popular que regulamenta o uso
terapêutico da maconha pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado. A votação
do projeto, que descriminaliza o semeio, o cultivo e a colheita de Cannabis
sativa para uso terapêutico pessoal, em quantidade não maior que a suficiente ao
tratamento, e que teve parecer favorável da relatora Marta Suplicy (MDB-SP),
acabou adiado para a semana que vem por um pedido de vista.
Outra proposta, o projeto de lei 10.549/2018, foi
apresentada em julho pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP) com o objetivo de
atualizar a legislação com um viés para o direito individual e o respeito pelos
direitos humanos em geral. Aprovado o projeto, a posse, o cultivo, o transporte
e o consumo de maconha ficariam descriminalizados, sendo possível portar até 40
gramas de maconha por mês e cultivar em casa até seis plantas femininas com
buds/camarões. A nova legislação prevê associações para o cultivo coletivo,
além do cultivo individual seja para uso medicinal ou pessoal.
Conversei com o deputado Paulo Teixeira sobre o projeto.
O DEPUTADO PAULO TEIXEIRA. FOTO: LULA MARQUES/LIDERANÇA PT |
Paulo Teixeira (PT-SP) – Acredito que terá um grande
impacto. Existem muitas pessoas presas por tráfico, sendo elas réus primários,
havendo atuado sem violência e portando baixa quantidade de ‘droga’, sendo uma
delas a maconha. No sistema prisional tem muita gente com este perfil, um
perfil que na minha opinião não deveria estar ali. A lei penal retrocede para
beneficiar o réu, sendo assim essa lei beneficiaria de forma importante as
pessoas que foram presas com pequena quantidade (de maconha). E terá um grande
impacto também porque a lei estabelece que não se pode encarcerar pessoas
primárias, com bons antecedentes e que não tenham atuado com violência. Esta
lei não vai ser boa apenas para as pessoas presas, mas também para impedir
novas prisões de pessoas com este perfil.
GM – Quando o projeto estará pronto para ser votado?
PT – Essa legislatura não quis enfrentar a questão, e por
isso demorei para protocolar, porque havia uma promessa de que eu seria o
relator deste projeto, o que nunca aconteceu. Por isso que protocolei perto de
terminar essa legislatura. Então, será após essa legislatura e espero que seja
uma melhor que a que temos agora.
GM – O que o senhor pensa da falta de acesso das pessoas
mais pobres ao uso medicinal da maconha, enquanto os remédios importados são
inacessíveis pelo seu custo?
PT – É um paradoxo que o Brasil importe remédio a base de
maconha; é um paradoxo em primeiro lugar que pessoas tenham que entrar na
justiça para obter remédio para essa procedência. E um paradoxo maior é
importar princípios ativos que já existem no Brasil e que poderiam ser
sintetizados ou não. Muitas pessoas poderiam ser curadas obtendo a planta e
fazendo seu uso direto. Então, na minha opinião, vai baratear o remédio e vai
ampliar o uso da planta diretamente, que é muito útil para várias funções. Terá
um impacto muito positivo se aprovado no Congresso.
GM – O que podem fazer as pessoas que desejam essas
mudanças?
PT – Em primeiro lugar, conhecer o projeto e dar o seu
apoio. Em seguida, pressionar o Congresso para que o vote.
Na última semana de julho deste ano foi lançada uma ação
chamada Droga é Caso de Política, da Plataforma Brasileira de Políticas sobre
Drogas, grupo que reúne 50 organizações que atuam pela redução da violência e
os danos ocasionados pelo proibicionismo. A ação tinha como objetivo central
esclarecer quem eram os candidatos que apoiam a descriminalização, o
autocultivo de maconha, ou apenas o uso medicinal, independente de partido ou
ideologia política partidária. Se inscreveram mais de 250 candidatos à
presidência, aos governos estaduais, deputados e senadores. Destes, foram
eleitos dez deputados federais, onze estaduais e um distrital.
Para o coordenador de relações institucionais da PBPD,
Gabriel Elias, “nos últimos anos aconteceram avanços sobre a reforma da
política de drogas na sociedade. Apesar disso, temos dificuldade de que o
debate chegue ao Congresso. Por isso nós decidimos criar o site para que os
eleitores possam levar isso em consideração no momento de definir seus votos”.
Ele faz coro com a fala do deputado Paulo Teixeira. “Os
projetos não deram um passo à frente nas suas tramitações porque existe uma
maioria que impede qualquer debate sobre o tema no Congresso”, pontua. “Além do
projeto mais recente, existem dois apresentados desde 2014, na Câmara dos
Deputados, e o que chegou ao Senado por sugestão popular. Acreditamos que na
próxima legislatura mais parlamentares eleitos com um compromisso de mudar a
política de drogas no Brasil”, que ressalta também o aumento de 20% para 32%
para o apoio da descriminalização da maconha, segundo o Datafolha, nos últimos
cinco anos.
Quem também tem essa visão é Daiene Mendes, jornalista
carioca que já escreveu para o jornal britânico The Guardian e faz parte do
Movimentos, um grupo de jovens de várias favelas e periferias do Brasil que
acredita que uma nova política de drogas é urgente. Daiene mora no Complexo do
Alemão, bairro com mais de 120 mil moradores segundo dados de organizações
locais como o Data Favela. Os números são diferentes dos dados que oficiais de
2010, que apontam cerca de 69 mil moradores segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, o IBGE.
“Historicamente as pessoas da favela, os pobres, os negros,
sempre estiveram excluídos de todos os lugares de decisão. É difícil imaginar
como poderia haver uma mudança no cenário, contribuir para mudança ou para a
formação política de algo, se as pessoas nunca se viram inseridas dentro de
nenhuma política pública. Nunca se viram em nenhum desses espaços. Isso começa
a mudar um pouco no governo do ex-presidente Lula, quando vêm as obras do PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento) e as pessoas começam a ter uma noção de
governo, do Estado, dentro da favela”, pontua Daiene Mendes.
O Complexo do Alemão abriga uma região que tem 15 bairros em
seu entorno e que sofre diretamente com os conflitos armados, execuções,
assassinatos e violações de direitos fundamentais como o acesso ao saneamento
básico, saúde e educação, já que as escolas e unidades de saúde, são fechadas
em casos de tiroteios. É uma área com grande potencial cultural e musical, como
as rodas de rima, slams que acontecem com autonomia dos moradores e sem apoio
governamental.
“A favela é o território do conservadorismo. Então tem muita
gente que acredita que todas as lajes da favela vão poder plantar pés de
maconha, que as pessoas vão viver com a produção que está em seu terraço e isso
não é real. A favela está conectada com preceitos religiosos, eu sempre digo
que existem muito mais igrejas que pontos de vendas de drogas nas favelas. A
partir daí temos a noção desse cenário, deste contexto que a gente está
falando”, afirma a jornalista.
No ano passado, o Rio de Janeiro teve apenas 14 dias em que
as 1573 escolas municipais funcionaram em sua totalidade, ou seja, sem nenhuma
escola ou creche fechada por tiros; nos outros 184 dias, ao menos uma unidade
escolar deixou de funcionar por conta da violência armada, segundo dados da
Secretaria Municipal de Educação. Isso é um perverso reflexo da suposta “guerra
às drogas”, que no Rio de Janeiro e outras cidade do país afeta a população que
tem menos acesso aos seus direitos por parte do Estado, exceto no caso do braço
armado que está presente. Apenas entre fevereiro e junho de 2018 foram
assassinadas 609 pessoas na cidade em decorrência de confrontos motivados pela
apreensão de drogas e armas.
Para o advogado e consultor jurídico Emílio Figueiredo, da
Reforma, não existe um bom caminho sem que se pense em reparação histórica para
os moradores das periferias. “Não há como regulamentar a maconha sem fazer
reparação histórica. Qualquer modelo que eu pense hoje é um modelo que vai
privilegiar os pontos tradicionais de venda, as pessoas afetadas pela
violência. Não é possível pensar em legalizar excluindo essa realidade. Eu
prefiro atrasar a regulamentação e fazer um modelo coerente com a realidade do
Brasil do que correr e fazer um modelo de qualquer jeito como muitos querem por
aqui”, aponta Emilio.
Apenas em junho foram assassinadas 155 pessoas em confronto
com a polícia e outros agentes de segurança, segundo dados da Secretaria de
Segurança Pública do Rio de Janeiro. Durante o mesmo período foram assassinados
12 agentes de polícia, sendo 11 militares e um civil.
“Agora, por que estes espaços têm essa percepção digamos
‘maligna’, sobre as drogas? Porque as pessoas estão mais próximas dos efeitos
negativos da política de drogas que dos efeitos positivos que elas podem nos
proporcionar. Há uma percepção sobre as drogas por experiência muito próxima de
pessoas que usam drogas e têm problema com o abuso da droga, a referência é
sempre negativa”, opina Daiene Mendes.
Desde fevereiro, a cidade do Rio de Janeiro se encontra sob
intervenção militar na segurança pública por meio de um decreto do governo
federal, mas a situação não melhorou, pelo contrário. Em média, uma pessoa foi
assassinada a cada oito horas na capital carioca em confrontos com as forças
policiais no último ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública.
Artigo publicado originalmente em espanhol na Revista Cáñamo
250 e em português na Smoke Buddies
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