"Uma visão romântica do cangaço não é compatível com um
momento em que discutimos feminicídio", diz biógrafa da mulher de Lampião.
MARIA BONITA EM CENA DO FILME DE BENJAMIN ABRAHÃO. FOTO:
REPRODUÇÃO
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Entrevista para o site Socialista Morena
A série da Rede Globo que eternizou, em 1982, a imagem de
Maria Bonita para a geração que hoje está com mais de 40 anos, trazia a mulher
de Lampião como uma sertaneja coquete, sexy, ciumenta e que atirava de pistola
nos “macacos” da polícia, lado a lado com os homens do bando. Era a mesma época
em que programas como Malu Mulher e TV Mulher desafiavam a censura do fim da
ditadura militar falando em divórcio, sexo e feminismo. A Maria Bonita de Tânia
Alves tinha tudo a ver com a nova mulher brasileira que nascia com a
redemocratização.
Nas imagens em preto e branco feitas pelo fotógrafo sírio
Benjamin Abrahão entre 1936 e 1937, Maria Bonita (que aliás só ganharia este
nome após se tornar uma lenda) surge como uma moça brejeira e algo tímida, mas
com um semblante maroto, e esposa dedicada do cangaceiro, a quem serve água do
cantil e penteia os cabelos lustrados com brilhantina.
Maria de Déa foi, na verdade, uma das poucas mulheres do
cangaço a escolher aquela vida errante sob o sol do sertão. Na biografia de
Maria Bonita escrita pela jornalista Adriana Negreiros, se está longe de ser a
pioneira do feminismo que tantos pintaram, Maria Bonita é uma mulher “arretada”
que foge dos maus tratos do marido para seguir Lampião, movida pelo desejo de
aventura e pelo amor a Virgulino.
Bem ao contrário de suas contemporâneas de cangaço, que se
assemelham a vítimas de Síndrome de Estocolmo, afeiçoando-se aos sequestradores
e estupradores que se tornariam seus companheiros. Libertam-se de pais e irmãos
opressores, é verdade, mas se dobram ao jugo dos amantes cangaceiros e são, no
fundo, tão invisibilizadas quanto suas mães e avós: nas notícias sobre o bando
de Lampião, os cronistas dedicam parcas linhas às mulheres, preocupando-se mais
em descrever (e menosprezar) sua aparência.
“As cangaceiras eram submetidas à mesma lógica que aprisiona
as mulheres na vida privada (no caso delas, os coitos, onde se escondiam da
polícia e realizavam tarefas domésticas convencionais, como cozinhar e
costurar), ao passo que aos homens era destinada a vida pública, o espetáculo”,
afirma Adriana. Dadá, a mulher de Corisco, é o caso mais evidente de
sequestrada que se liga emocionalmente ao sequestrador: aos 12 anos, foi
deflorada pelo cangaceiro e trazida para o convívio no bando anos mais tarde,
quando Lampião se une a Maria Bonita e abre a possibilidade de os cabras terem
companheiras.
Lampião também se dedicava à costura e ao bordado de suas
roupas e acessórios, como revelou o historiador Frederico Pernambucano de Mello
em Estrela de Couro: A Estética do Cangaço –o que não significa, para a
biógrafa, que os cangaceiros dividissem as tarefas domésticas. Mas é fato que o
“rei do cangaço” costurava e bordava à máquina, com perfeição, seus bornais
coloridos, cinturões, as capas dos cantis, seu chapéu de couro… Lampião teria
inclusive alcançado alguma fama como alfaiate de couro antes de entrar para o
cangaço.
Lampião na máquina de costura |
“No sertão do começo do século 20, o manejo de linhas e
agulhas não era uma atividade exclusivamente feminina. Os vaqueiros produziam
os próprios gibões e chapéus e primavam pela beleza, além do aspecto utilitário
da indumentária. Cangaceiros também se dedicavam à produção de seus trajes
–mais do que simples vestimentas, verdadeiros uniformes de guerra. Se Lampião
apreciara o bordado de Dadá era porque dominava o assunto e sabia reconhecer a
sofisticação de uma trama. Entre os sertanejos, costurar e bordar não era
ocupação que denunciasse pouca macheza”, conta Adriana no livro.
A vida familiar no cangaço era sofrida, o que não
transparece nas imagens feitas por Abrahão, com as mulheres atirando e se
divertindo a valer diante da câmera. Na realidade, de acordo com a jornalista,
Maria Bonita não participava das ações do bando, assim como a maior parte das
cangaceiras – ao que consta, Dadá era a única mulher a carregar um fuzil.
“Raras foram as bandoleiras que pegaram em armas. Ao contrário do que propõe
uma visão romanceada do cangaço, as mulheres não participavam dos combates”,
diz. Apesar de ter sido aparentemente feliz ao lado do amado, Maria foi
obrigada, como as demais, a dar à adoção sua filha, Expedita.
Leia abaixo a entrevista com a biógrafa de Maria Bonita. De
bônus, o documentário Feminino Cangaço, de Lucas Viana e Manoel Neto, do Centro
de Estudos Euclydes da Cunha, sobre a presença das mulheres entre os cangaceiros.
Socialista Morena – Percebi que você teve muita dificuldade em encontrar informações sobre Maria Bonita. As cangaceiras foram invisibilizadas pelos cronistas da época?
Adriana Negreiros – Sim. Os cronistas da época mal se
referiam às mulheres. A presença das cangaceiras só começou a ser noticiada
mais de um ano depois do ingresso delas no bando –e, ainda assim, de maneira
bastante fantasiosa. As primeiras notícias davam conta de que as moças –ou
meninas, porque algumas delas tinham 11, 12 anos– compunham um harém de
Lampião. Posteriormente, quando a dinâmica no interior do bando começou a se
mostrar mais clara (com casais em relação tradicionais), os cronistas pouco se
interessariam pelas mulheres. Quando muito, referiam-se à sua aparência. Sobre
Maria de Déa (a futura Maria Bonita), um escritor comentou que tinha ‘mãos de
unhas sujas, descuidadas’ e o ‘semblante sem a beleza de um sorriso meigo’.
Como acontece ainda hoje, as mulheres eram reduzidas à aparência. E exigia-se
que fossem lindas, limpinhas e fofas.
SM – As cangaceiras não pegavam em armas? Só ficavam nos
bastidores? Quais as principais funções delas?
AN – Raras foram as bandoleiras que pegaram em armas. Ao
contrário do que propõe uma visão romanceada do cangaço, as mulheres não
participavam dos combates. As cenas que vimos em séries e filmes, de
cangaceiras atirando contra homens das forças volantes (os ‘caçadores’ de
cangaceiros), não passam de licença dramatúrgica. Os combates eram importantes
demais para serem delegados às mulheres –tratava-se de tarefa de ‘macho’, algo
que exigia valentia, senso de estratégia e força, atributos que não eram considerados
femininos naquele ambiente extremamente machista. As cangaceiras eram
submetidas à mesma lógica que aprisiona as mulheres na vida privada (no caso
delas, os coitos, onde se escondiam da polícia e realizavam tarefas domésticas
convencionais, como cozinhar e costurar), ao passo que aos homens era destinada
a vida pública, o espetáculo.
SM – Mas Lampião também era um exímio bordador, não é?
AN – Era, mas não porque fosse um homem delicado, e sim
porque essa é uma tradição do vaqueiro, que produzia os próprios gibões.
Lampião é um herdeiro dessa tradição.
SM – Você mostra uma história bem pouco heroica dos
cangaceiros, onde havia muitos estupros. Inclusive as cangaceiras foram
sequestradas por seus futuros maridos. Você acha que, ao longo da história, a imagem
dos cangaceiros foi mitificada como espécies de Robin Hood do sertão sem sê-lo?
AN – Sim. Ainda com Lampião em vida, criou-se uma narrativa
segundo a qual ele era uma espécie de camponês revolucionário, quase um
comunista, homem empenhado em arrancar dos ricos e distribuir entre os pobres.
Trata-se de uma visão, a meu ver, bastante ingênua. Lampião era muito mais
chegado à elite política e econômica do que ao sertanejo simples. Este, aliás,
era a grande vítima do cangaço –sofria violência por parte dos bandoleiros e,
ao mesmo tempo, da polícia. O estupro, arma utilizada tanto pelos cangaceiros
quanto pelas forças volantes, atingia sobretudo as mulheres pobres. E se
Lampião tocou o terror durante quase duas décadas, sem ser capturado, não foi
porque tivesse pacto com o sobrenatural ou proteção de Padre Cícero, como se
comentava no sertão, mas porque era protegido por coronéis e políticos. Um de
seus melhores amigos era o interventor de Sergipe, Eronides de Carvalho, homem
da confiança do então presidente Getúlio Vargas. Não vejo Lampião como herói,
embora não o considere um bandido comum. Nisso, concordo com Ariano Suassuna. O
escritor diz que, a despeito de ter sido um sanguinário, Virgulino ‘não era uma
alma pequena e vulgar’. O cangaço é um fenômeno complexo demais para ser preso
em categorias simples, como o herói versus o bandido, o bem contra o mal. Como
quase tudo, não comporta maniqueísmos.
SM – No livro Bandidos, Eric Hobsbawm chega a chamar o
cangaço de “banditismo social”, por ser “contra os opressores”. Você leu o
livro dele? Discorda dessa visão?
AN – Li o livro do Hobsbawm e tenho a opinião de que o
conceito de ‘bandido social’ não foi compreendido por parte de seus leitores. A
meu ver, Hobsbawm não enaltece a figura de tipos como Lampião, tampouco sugere
que sejam revolucionários sedentos por igualdade. Ao contrário, apresenta como
uma de suas características a ausência de consciência política. Contudo,
reconhece que a atuação criminosa tem um componente de protesto por uma
situação crítica dada –no caso dos cangaceiros, a vida dura no sertão,
enfrentando a seca, a fome e a falta de perspectivas (a não ser que fosse um
estoico, um sertanejo pobre dos anos 30 tinha todos os motivos para ser
revoltado). Acredito que quem melhor explicou essa questão foi o historiador
Frederico Pernambucano de Mello, ao referir-se ao “irredentismo” do cangaço.
Para Mello (sem qualquer dúvida, a maior autoridade no tema), Lampião é o
arquétipo do ‘irredento’ brasileiro, um homem que não se subordinou aos valores
do colonizador. Mas isso não o torna um socialista, digamos assim. Seu sonho
era ser rico, dono de fazendas.
TÂNIA ALVES E NÉLSON XAVIER, O LAMPIÃO E MARIA BONITA DA
GLOBO EM 1982
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SM – E as cangaceiras? Você vê algum “feminismo” nelas?
AN – Nenhum. No interior do bando, vigorava um código de
conduta extremamente machista, que previa pena de morte para as mulheres em
caso de adultério –embora aos homens fosse dado o direito de envolver-se em
toda sorte de aventuras sexuais. Não há notícias de que as mulheres se
opusessem a essas normas, muito pelo contrário. Dadá costumava conclamar suas
colegas de bando a ‘respeitar’ os homens aos quais pertenciam, o que significa
obedecer cegamente a tudo o que eles determinassem. Também não havia no bando o
que hoje chamamos de sororidade –as mulheres não se apoiavam. Maria de Déa e
Dadá, por exemplo, se detestavam. Antes de ser morta por apedrejamento por
‘trair’ Zé Baiano, Lídia pediu ajuda de Maria de Déa, que se recusou a intervir
a favor da colega. Depois de assassinadas, essas mulheres ainda eram vistas,
pelas próprias companheiras, como assanhadas. A mensagem era: se tivessem
respeitado seus homens, estariam vivas. Como se tivessem feito por merecer a
punição.
SM – Ao contrário de Dadá, Maria de Déa foi para o cangaço
por vontade própria, fugindo de um marido abusador. Você acha que ela foi feliz
ao lado de Lampião?
AN – Acredito que ela tinha uma vida compatível com seu
espírito aventureiro e transgressor –comportamento muito valorizado nos homens,
mas sempre reprimido nas mulheres. Maria era, de fato, uma mulher arretada e
amava Lampião. Conseguiu algo que muitas não conseguem até hoje, que é dar fim
a uma relação abusiva e começar uma vida nova. A despeito disso, Maria
enfrentou uma existência miserável, em meio ao sertão, passando fome, sede,
dormindo ao relento e tendo que abrir mão da própria filha, entregue a uma
família de vaqueiros. Certamente foi feliz em muitos momentos e extremamente
infeliz em outros.
SM – O que aconteceu com as crianças das cangaceiras?
AN – Foram criadas por famílias sertanejas e tocaram suas
vidas, quase todas sem nenhum contato com os pais biológicos.
SM – No livro, você fala que Lampião se enfurecia ao ser
ligado a estupros. Ele não participou das violências sexuais?
AN – Sim. Algumas delas, inclusive, estão relatadas no
livro, como o estupro coletivo do qual foi vítima a esposa de um senhor de 80
anos. Lampião achou uma sem-vergonhice tremenda aquela situação, um idoso
casado com uma mocinha (a esposa era bem mais jovem do que o senhor), e decidiu
dar um corretivo no homem –obrigou-o a presenciar sua mulher sendo violentada
por todos os cabras de seu bando (ele, como chefe, foi o primeiro a penetrar a
jovem).
SM – Se você roteirizasse “Lampião e Maria Bonita”, da
Globo, hoje em dia, após a pesquisa para o livro, como mostraria os
protagonistas?
AN – Esse é um desafio que transfiro para o Heitor Dhalia, o
Manoel Rangel e o Egisto Betti, da Paranoid, produtora que comprou os direitos
audiovisuais do meu livro. Estou segura de que eles irão dar ao tema o
tratamento que os tempos atuais exigem –uma visão romântica do cangaço não é
compatível com um momento em que discutimos feminicídio, relacionamentos
abusivos e os perigos da exaltação de figuras autoritárias e justiceiras.
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