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quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Somos todos africanos

Somos mamíferos primatas – eis uma frase que resume bem a posição da espécie humana (Homo sapiens) na escala zoológica. Pelos sobre o corpo – ainda que relativamente escassos – e amamentação dos filhotes são características que compartilhamos com os demais mamíferos (classe Mammalia). Mãos e pés pentadáctilos e armados com unhas (em vez de garras), crânio em ângulo reto com o pescoço e órbitas oculares voltadas para frente, e não para os lados, são características que compartilhamos com os demais primatas (ordem Primates).


Por Felipe A. P. L. Costa

A espécie humana em perspectiva

O nome da ordem – Primates – foi cunhado por Carl von Linné (1707-1778), ou simplesmente Lineu, o criador da nomenclatura científica que usamos ainda hoje. O termo deriva de primus, palavra latina que significa ‘primeiro’ ou ‘em primeiro lugar’ e que foi usada por ele para designar o grupo que, em sua opinião, ocuparia a posição mais ‘elevada’ dentro do reino animal.

Ao longo da vida, Lineu descreveu e nomeou formalmente pouco mais de 40 espécies de primatas, distribuídas em quatro gêneros: Homo (seres humanos e chimpanzés), Simia (macacos do Novo e do Velho Mundo), Lemur (‘prossímios’ e um lêmure-voador, este posteriormente transferido para a ordem Dermoptera) e Vespertilio (morcegos, transferidos depois para uma ordem própria, Chiroptera). Desde então, outras espécies foram descritas e nomeadas, de sorte que atualmente a ordem abriga cerca de 380 espécies, a maioria encontrada em hábitats tropicais.

Como um grupo, os primatas têm sido objeto de estudo e preocupação de muitos cientistas. Não é difícil entender o fascínio que o grupo exerce, notadamente entre estudiosos da evolução: reconstituir a história evolutiva desses animais implicaria em conhecer melhor a história evolutiva de nossos ancestrais imediatos e, quem sabe, da nossa própria espécie.

Os primatas

A história evolutiva dos mamíferos teve início há cerca de 220-230 milhões de anos, a partir de uma linhagem ancestral de répteis (agora extintos), os terapsídeos. A ampla irradiação evolutiva do grupo, no entanto, só ocorreria quase 100 milhões de anos mais tarde.

As primeiras linhagens de primatas apareceram já na chamada era Cenozoica, iniciada há cerca de 65 milhões de anos. Eram pequenos animais arborícolas de hábitos noturnos, semelhantes aos musaranhos atuais (mamíferos da ordem Insectivora). Calcula-se que os primatas viventes sejam os remanescentes de um amplo processo de irradiação que deu origem a um total de ao menos seis mil espécies – a maioria, evidentemente, já extinta.

Há uns 50 milhões de anos, o ramo ancestral que daria origem a todos os primatas dividiu-se em duas linhagens: os estrepsirrinos (ou prossímios) e os haplorrinos (símios). Primatas estrepsirrinos são animais de pequeno porte, portadores de rinário (região úmida e desprovida de pelos em torno das narinas) e de uma cauda longa e não preênsil. O grupo, concentrado na África (principalmente Madagascar) e no Sudeste Asiático, inclui lórises, gálagos, lêmures e o ai-ai. Os haplorrinos são em geral animais de médio ou grande porte (com exceção de társios e micos, que são pequenos), muitos providos de cauda preênsil. O grupo está concentrado nas regiões tropicais da África, da Ásia e das Américas Central e do Sul e inclui társios, macacos e humanos.

O ramo ancestral dos haplorrinos se subdividiu em três grandes linhagens: os társios, os macacos do Novo Mundo (ou platirrinos) e os macacos do Velho Mundo (catarrinos).

O ramo dos macacos do Novo Mundo está separado do ramo dos macacos do Velho Mundo há ao menos 20 milhões de anos. Os macacos do Novo Mundo são arborícolas, sendo que muitos deles possuem cauda longa e preênsil, com a qual conseguem se agarrar aos galhos. Algumas espécies do Velho Mundo também são arborícolas, mas outras são essencialmente terrestres; de resto, nenhuma delas possui cauda preênsil.

Vale ressaltar que os primatas encontrados em território brasileiro são todos platirrinos. Entre essas espécies estão, por exemplo, o macaco-prego (Cebus), micos e saguis (Callithrix e gêneros afins), macaco-aranha (Ateles), muriqui (Brachyteles), bugios (Alouatta), uacaris (Cacajao), sauás (Callicebus) e o macaco-da-noite (Aotus).

Além da presença ou não de uma cauda preênsil, platirrinos e catarrinos diferem em outros aspectos importantes. Um deles é o nariz: platirrinos, como o nome indica, têm narizes amplos, com narinas afastadas e voltadas para frente; catarrinos têm narizes estreitos, com narinas próximas e voltadas para baixo. Há diferenças também na dentição: platirrinos possuem três pré-molares em cada meia-arcada, enquanto os catarrinos possuem apenas dois.

Os antropoides

Os primatas viventes mais intimamente aparentados aos seres humanos são os catarrinos, entre os quais duas grandes linhagens (referidas formalmente como superfamílias) são reconhecidas: Cercopithecoidea e Hominoidea.

A superfamília Cercopithecoidea abriga diversas espécies de macacos africanos e asiáticos, de hábitos arborícolas ou terrestres, caracterizados pela presença de cauda. Entre eles estão, por exemplo, babuínos (Papio), mandril (Mandrillus), colobos (Colobus) e o macaco-narigudo (Nasalis). Essa linhagem inclui a maior de todas as famílias (em número de espécies), Cercopithecidae, o que ajuda a fazer da África o continente mais rico em espécies de primatas.

Já a superfamília Hominoidea costuma ser subdividida em dois grupos: o dos pequenos símios (gibões) e o dos grandes símios, ou antropoides. Estes incluem o gênero humano (Homo) e outros três gêneros de primatas viventes, Gorilla (duas espécies de gorilas), Pan (chimpanzés e bonobos) e Pongo (duas – ou talvez três – espécies de orangotangos). Os três primeiros são gêneros essencialmente africanos – com a ressalva, mais uma vez, de que o gênero Homo tornou-se cosmopolita; o último é típico do Sudeste Asiático.

O gênero Homo

De 65 milhões de anos até cerca de 6-8 milhões de anos atrás, nossos ancestrais viveram como primatas de hábitos essencialmente arborícolas. Algumas das tendências observadas na evolução humana tiveram início entre esses ancestrais. Outras, no entanto, apareceram e se estabeleceram ao longo da história do ramo dos antropóides, entre os quais mais tarde surgiria o Homo sapiens moderno.

A maioria dos estudiosos é de opinião que chimpanzés e bonobos são os primatas viventes mais próximos da espécie humana. (Chimpanzés e bonobos são tão parecidos entre si que os próprios especialistas tiveram dificuldades para reconhecê-los como espécies distintas.) Mas que não haja dúvida: não somos descendentes de chimpanzés ou bonobos, do mesmo modo como eles não são nossos descendentes. Ocorre apenas que partilhamos de um mesmo ancestral comum.

Há uns 7-8 milhões de anos (equivalente a 350-400 mil gerações humanas), esse ramo ancestral comum teria se dividido, dando origem a duas linhagens: de um lado, os ancestrais de chimpanzés e bonobos; de outro, os ancestrais dos seres humanos. Como os detalhes da separação não estão devidamente documentados em restos fósseis, podemos dizer que há um hiato – retratado no imaginário popular como um ‘elo perdido’ – entre os humanos e seus parentes vivos mais próximos.

Ocorre que o número de espécies de hominídeos fósseis tem aumentado bastante nos últimos anos, preenchendo assim várias lacunas. Entre esses novos achados, o candidato a elo mais antigo que se conhece talvez seja o Sahelanthropus tchadensis, o ‘homem de Toumai’, cujos primeiros restos fósseis – um crânio, pedaços de mandíbulas e alguns dentes – foram encontrados no deserto de Djurab, no Chade, em 2001, por uma equipe franco-chadiana liderada pelo paleontólogo francês Michel Brunet (nascido em 1940). A idade desses fósseis foi estimada em 7 milhões de anos, recuando assim a idade do elo perdido em cerca de 3 milhões de anos  – antes do homem de Toumai, o elo mais antigo que se conhecia tinha cerca de 4 milhões de anos.

Há outras peças nesse quebra-cabeça (e.g., Orrorin e Ardipithecus), mas as informações disponíveis sobre todos eles ainda são fragmentárias e insuficientes, dificultando que se estabeleça um quadro geral mais consistente, ao menos por enquanto.

A transição Australopithecus-Homo

Uns poucos milhões de anos após a separação dos ramos que dariam origem aos chimpanzés e aos humanos, a árvore evolutiva dos antropoides já havia experimentado diversas ramificações. Na opinião de estudiosos, os hominídeos fósseis mais próximos do gênero Homo são os do gênero Australopithecus, que teria prosperado entre 4 milhões e 1 milhão de anos atrás.

As espécies conhecidas de Australopithecus (e.g., A. garhi, A. robustus, A. africanus e A. afarensis) foram descritas a partir de pequenos restos fósseis, como dentes e pedaços de ossos do crânio. Uma famosa exceção é ‘Lucy’, nome dado ao esqueleto de uma fêmea de A. afarensis encontrado pelo paleoantropólogo estadunidense Donald C. Johanson (nascido em 1943), na região de Hadar, na Etiópia, em 1974, e datado de 2,9 milhões de anos atrás. Além de Lucy, foram encontrados no mesmo sítio restos de outros 13 indivíduos – o grupo todo foi apelidado de ‘primeira família’. Até hoje, já foram encontrados restos fósseis de mais de 300 indivíduos dessa espécie, em diferentes localidades da África. Os fósseis indicam que os australopitecos mediam entre 1 e 1,3 m de altura, eram bípedes e tinham uma capacidade craniana entre 350 e 400 cm3, equivalente a pouco menos de um terço da capacidade média dos seres humanos atuais – recentemente, porém, foram encontrados fósseis de australopitecos bem maiores.

O gênero Homo teria surgido em alguma região da África (o lugar exato ainda é motivo de discussão e pesquisa), entre 2,5 e 2 milhões de anos atrás, a partir de alguma espécie de Australopithecus (A. africanus e A. afarensis são os candidatos mais prováveis). Quatro processos costumam ser evocados na história evolutiva que deu origem ao gênero Homo e, dentro deste, à espécie Homo sapiens, a saber: aumento do cérebro (nosso cérebro tem em média uns 1,3 mil cm3 de volume, enquanto o dos chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, tem em média um quarto disso); mudanças nas mandíbulas e nos dentes (as mandíbulas foram recuadas; os dentes diminuíram de tamanho, em especial os caninos); bipedalismo e mudanças no comportamento social e cultural. Hipóteses a respeito deste último processo, ao contrário dos três anteriores, estão fundadas no estudo de evidências indiretas (e.g., artefatos).

A aurora da espécie humana

Há quem imagine que a espécie de Lucy (Australopithecus afarensis) deu origem a duas linhagens: uma levou a mais um australopitecíneo, o A. africanus, enquanto a outra conduziu ao Homo habilis, primeiro representante conhecido do gênero humano. Há, no entanto, quem proponha uma rota alternativa: A. afarensis teria dado origem a A. africanus e este a H. habilis, a mais antiga espécie de Homo conhecida, com restos fósseis datados de 2,5 milhões de anos. O certo é que várias espécies de Australopithecus e Homo viveram juntas em diversas regiões da África, ainda que a duração e as implicações evolutivas dessa convivência sejam questões em aberto.

Os registros fósseis sugerem que o H. habilis surgiu entre 2 e 2,5 milhões de anos atrás, nas savanas africanas. Era bípede e de baixa estatura (pouco mais de 1 m de altura), mas com uma capacidade craniana (400-650 cm3) superior à dos australopitecos. Fabricava instrumentos rudimentares e já se comunicaria oralmente. Há cerca de 1-1,5 milhão de anos, uma linhagem de H. habilis teria dado origem ao H. erectus, a primeira espécie do gênero a sair da África: restos fósseis atribuídos a esta espécie foram encontrados na África, mas também na Ásia (Indonésia e China) e Europa. (A presença de H. erectus nas Américas é uma possibilidade que ainda carece de sustentação.) A capacidade craniana continuou aumentando, passando de aproximadamente 600 cm3 para mais de 1.000 cm3. O número, a especialização e a complexidade dos instrumentos associados a esses hominídeos também aumentaram de modo significativo.

Então, há uns 500 mil anos, populações humanas ditas anatomicamente arcaicas, descendentes talvez de H. erectus, ou que com eles partilharam de um ancestral comum, conseguiram se estabelecer na Europa, na Ásia e na Oceania (Indonésia), além da África. Não há ainda um consenso sobre a posição taxonômica e os nomes de todas essas diversas formas regionais (e.g., Homo heidelbergensis, H. neanderthalensis e H. helnei). Por fim, entre 40 e 80 mil anos atrás, populações de H. sapiens ditas anatomicamente modernas já estavam estabelecidas na África, na Europa e na Ásia. De onde vieram e como teriam surgido esses seres humanos modernos?

O berço é a África?

Alguns autores acreditam que os seres humanos modernos surgiram independentemente na África, na Ásia e na Europa. Essa é a chamada hipótese ‘multirregional’ para a origem do Homo sapiens. Outros, no entanto, defendem uma origem exclusivamente africana. É a hipótese ‘oriundos da África’. As evidências atuais sustentam melhor este segundo ponto de vista – os seres humanos modernos teriam surgido na África; em seguida, colonizaram a Ásia e a Europa, onde conviveram e terminaram substituindo os povos indígenas que viviam naquelas regiões.

Em linhas gerais, a história poderia ser resumida da seguinte maneira: há cerca de 300 mil anos, nossos ancestrais africanos teriam se dividido em duas linhagens, a primeira permaneceu na África, enquanto a outra (os neandertais – Homo neanderthalensis ou Homo sapiens neanderthalensis) saiu do continente africano, indo colonizar a Ásia e a Europa, onde prosperaram e viveram até cerca de 40 mil anos atrás, quando foram extintos. A linhagem que permaneceu na África deu origem aos humanos modernos (Homo sapiens sapiens), alguns dos quais migraram depois para o Oriente Médio, a Europa e a Ásia; em seguida, para a Austrália e ilhas próximas; e, por fim, há uns 15-30 mil anos, para as Américas (do Norte, Central e do Sul). Os humanos modernos e os neandertais teriam convivido por milhares de anos em diversas regiões, principalmente na Europa e na Ásia.

Evidências moleculares

A noção de que a espécie humana surgiu na África é antiga. Em 1871, Charles Darwin (1808-1882) publicou um livro sobre a evolução humana no qual já argumentava a favor dessa ideia. Vale ressaltar que, na época de Darwin, os antropoides extintos ainda eram desconhecidos – os primeiros fósseis de Australopitechus, por exemplo, só foram descobertos em 1924, na África do Sul.

Desde então, o estudo das origens dos seres humanos tem se guiado muito pelos achados fósseis. O mesmo vale para o estudo da colonização dos continentes ou das migrações regionais. Todavia, com o advento e a disseminação de técnicas moleculares, tem sido possível reconstituir capítulos importantes da nossa história evolutiva com base no estudo de marcadores genéticos presentes em populações contemporâneas. Um desses capítulos diz respeito à controvérsia em torno da saída do H. sapiens da África. Outro exemplo seria a questão da colonização das Américas, os últimos continentes a serem ocupados por seres humanos.

A opinião tradicional, com base no exame de fósseis e principalmente no exame de artefatos, sustenta que os primeiros colonizadores chegaram aqui por terra, através do estreito de Behring (entre o Alasca e a Rússia), vindos da Ásia. A partir de então, eles teriam colonizado a América do Norte e, em seguida, a América Central e ilhas próximas e, por fim, a América do Sul. Mais recentemente, porém, evidências moleculares – obtidas a partir do estudo de certos marcadores genéticos – serviram de base para uma hipótese radicalmente diferente. De acordo com esse novo ponto de vista, os primeiros colonizadores teriam chegado primeiro na América do Sul (vindos da África pelo mar) e só depois teriam colonizado as Américas Central e do Norte. Todavia, ainda mais recentemente, a balança tornou a favorecer a opinião tradicional, só que agora recuando o calendário da colonização para até 50 mil anos atrás.

Coda

Evidências fragmentárias dão origem a opiniões divergentes. Mais pesquisas de campo terão de ser realizadas antes que possamos equacionar e eventualmente resolver essas divergências, obtendo então uma noção mais clara do que se passou por aqui com os nossos antepassados. Acima de todas essas controvérsias, no entanto, uma coisa parece certa: todos nós – americanos, asiáticos, europeus etc. – descendemos de um mesmo ramo ancestral. Em outras palavras, a despeito das notáveis diferenças (físicas e culturais) que observamos hoje entre as mais afastadas e distantes populações humanas, viemos todos do mesmo lugar – somos todos africanos.

Sugestões de leitura

++ Foley, R. 1993. Apenas mais uma espécie única. SP, Edusp.

++ Lewin, R. 1999. Evolução humana. SP, Atheneu.

[Nota: trechos deste artigo foram publicados anteriormente na Ciência Hoje e no Observatório da Imprensa; para detalhes a respeito do livro mais recente do autor, O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), inclusive sobre a aquisição por via postal.

Via - Jornal GGN

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