Uma das maiores balelas do discurso anti-cotas no Brasil é
que as políticas de ação afirmativa não se justificam porque “todos são iguais
perante à lei”. Iguais como, se uns saíram na frente, com séculos de vantagem,
em relação aos outros? As cotas vieram justamente para ser uma ponte sobre o
fosso histórico entre negros […]
Via - Socialista Morena
(NEGROS LIBERTOS EM PORTO ALEGRE EM 1895. FOTO DE HERR COLEMBUSCH. ACERVO RONALDO BASTOS) |
Uma das maiores balelas do discurso anti-cotas no Brasil é
que as políticas de ação afirmativa não se justificam porque “todos são iguais
perante à lei”. Iguais como, se uns saíram na frente, com séculos de vantagem,
em relação aos outros? As cotas vieram justamente para ser uma ponte sobre o
fosso histórico entre negros e brancos. Para dar aos negros condições de
alcançarem mais rápido esta “igualdade” que alguns insistem que já existe.
Ninguém melhor do que o antropólogo Darcy Ribeiro, grande
inspirador deste blog, para explicar como esta “igualdade” de condição nada
mais é do que uma falácia por parte de quem, no fundo, deseja perpetuar as
desigualdades raciais em nosso país. Os trechos que selecionei são do livro O O
Povo Brasileiro (Companhia das Letras), cuja leitura recomendo fortemente.
Deveria ser obrigatório em todas as escolas. Atentem para um detalhe:
reconheçam no texto de Darcy os futuros meninos de rua. (Leia também o texto
que postei ano passado, aqui.)
E viva o Dia da Consciência Negra!
***
Por Darcy Ribeiro
CLASSE E RAÇA
A distância social mais espantosa no Brasil é a que separa e
opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre
negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros.
Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva
do que deveria ser. Não foi assim no passado. As lutas mais longas e cruentas
que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos
negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início
quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição.
Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e
para a reconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dos
quilombos, que se multiplicaram aos milhares. Eram formações protobrasileiras,
porque o quilombola era um negro já aculturado, sabendo sobreviver na natureza
brasileira, e, também, porque lhe seria impossível reconstituir as formas de
vida da África. Seu drama era a situação paradoxal de quem pode ganhar mil
batalhas sem vencer a guerra, mas não pode perder nenhuma. Isso foi o que
sucedeu com todos os quilombos, inclusive com o principal deles, Palmares, que
resistiu por mais de um século, mas afinal caiu, arrasado, e teve o seu povo
vendido, aos lotes, para o sul e para o Caribe.
Mas a luta mais árdua do negro africano e de seus
descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de
participante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado à força.
Ajudou a construí-la e, nesse esforço, se desfez, mas, ao fim, só nela sabia
viver, em função de sua total desafricanização. A primeira tarefa do negro
brasileiro foi a de aprender a falar o português que ouvia nos berros do
capataz. Teve de fazê-lo para poder comunicar-se com seus companheiros de
desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou, começando a
sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energética para o
trabalho. Conseguindo miraculosamente dominar a nova língua, não só a refez,
emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua
difusão por todo o território, uma vez que nas outras áreas se falava
principalmente a língua dos índios, o tupi-guarani.
Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12
milhões de negros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que
se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. Ao fim do período colonial,
constituía uma das maiores massas negras do mundo moderno. Sua abolição, a mais
tardia da história, foi a causa principal da queda do Império e da proclamação
da República. Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema
de recrutamento da força de trabalho, substituindo a mão de obra escrava por
imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente e
exportável a baixo preço.
(…)
O negro, sentindo-se aliviado da brutalidade que o mantinha
trabalhando no eito, sob a mais dura repressão –inclusive as punições
preventivas, que não castigavam culpas ou preguiças, mas só visavam dissuadir o
negro de fugir– só queria a liberdade. Em consequência, os ex-escravos
abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à procura de
terrenos baldios em que pudessem acampar, para viverem livres como se
estivessem nos quilombos, plantando milho e mandioca para comer. Caíram, então,
em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se
substancialmente. Menos pela supressão da importação anual de novas massas de
escravos para repor o estoque, porque essas já vinham diminuindo há décadas.
muito mais pela terrível miséria a que foram atirados. não podiam estar em
lugar algum, porque cada vez que acampavam, os fazendeiros vizinhos se
organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez que toda a
terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra.
As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e
netos de antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma
atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o
mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era
facilmente substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o
negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela
preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles
são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas
como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão.
Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem
ascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco para discriminar
o negro-massa.
A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade,
nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer
pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus
filhos, de qualquer ordem de assistência. Só lhes deu, sobejamente,
discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu-se às cidades,
onde encontraram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deram lugar
às favelas. Desde então, elas vêm se multiplicando, como a solução que o pobre
encontra para morar e conviver. Sempre debaixo da permanente ameaça de serem
erradicados e expulsos.
(…)
BRANCOS VERSUS NEGROS
Examinando a carreira do negro no Brasil, se verifica que,
introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução
das tarefas mais duras, como mão-de-obra fundamental de todos os setores
produtivos. Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de
mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava
precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador
livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de
exploração que, embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se
na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um
subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continua sendo
principalmente o de animal de serviço.
Enquanto escravo poderia algum proprietário previdente
ponderar, talvez, que resultaria mais econômico manter suas “peças” nutridas
para tirar delas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um negro
desgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto da propriedade,
vivendo do produto de sua própria roça, devotado a tarefas mais leves
requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já não sendo de ninguém, se encontrava
só e hostilizado, contando apenas com sua força de trabalho, num mundo em que a
terra e tudo o mais continuava apropriada. Tinha de sujeitar-se, assim, a uma
exploração que não era maior que dantes, porque isso seria impraticável, mas
era agora absolutamente desinteressada do seu destino. Nessas condições, o
negro forro, que alcançara de algum modo certo vigor físico, poderia, só por
isso, sendo mais apreciado como trabalhador, fixar-se nalguma fazenda, ali
podendo viver e reproduzir. O débil, o enfermo, o precocemente envelhecido no
trabalho, era simplesmente enxotado como coisa imprestável.
Depois da primeira lei abolicionista –a Lei do Ventre Livre,
que liberta o filho da negra escrava–, nas áreas de maior concentração da
escravaria, os fazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas
próximas, as crias de suas negras que, já não sendo coisas suas, não se sentiam
mais na obrigação de alimentar. Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre
(1871), fundaram-se nas vilas e cidades do Estado de São Paulo dezenas de
asilos para acolher essas crianças, atiradas fora pelos fazendeiros. Após a
abolição, à saída dos negros de trabalho que não mais queriam servir aos
antigos senhores, seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos das
fazendas. Numerosos grupos de negros concentraram-se, então, à entrada das
vilas e cidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdade
famélica é que começaram a se deixar aliciar para o trabalho sob as condições
ditadas pelo latifúndio.
Com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de
exportação e a superação consequente da auto-suficiência das fazendas, que
passaram a concentrar-se nas lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café,
do algodão e, depois, no plantio de pastagens artificiais), outros contingentes
de trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar a massa da população
residual das vilas. Era agora constituída não apenas de negros, mas também de
pardos e brancos pobres, confundidos todos como massa dos trabalhadores
“livres” do eito, aliciáveis para as fainas que requeressem mão-de-obra. Essa
humanidade detritária predominantemente negra e mulata pode ser vista, ainda
hoje, junto aos conglomerados urbanos, em todas as áreas do latifúndio, formada
por braceiros estacionais, mendigos, biscateiros, domésticas, cegos, aleijados,
enfermos, amontoados em casebres miseráveis. Os mais velhos, já desgastados no
trabalho agrícola e na vida azarosa, cuidam das crianças, ainda não
amadurecidas para nele engajar-se.
(…)
Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pela
industrialização, ameaça não romper com a superconcentração da riqueza, do
poder e do prestígio monopolizado pelo branco, em virtude da atuação de pautas
diferenciadoras só explicadas historicamente, tais como: a emergência recente
do negro da condição escrava à de trabalhador livre; uma efetiva condição de
inferioridade, produzida pelo tratamento opressivo que o negro suportou por
séculos sem nenhuma satisfação compensatória; a manutenção de critérios
racialmente discriminatórios que, obstaculizando sua ascensão à simples
condição de gente comum, igual a todos os demais, tornou mais difícil para ele
obter educação e incorporar-se na força de trabalho dos setores modernizados.
As taxas de analfabetismo, de criminalidade e de mortalidade dos negros são,
por isso, as mais elevadas, refletindo o fracasso da sociedade brasileira em
cumprir, na prática, seu ideal professado de uma democracia racial que
integrasse o negro na condição de cidadão indiferenciado dos demais.
Florestan Fernandes assinala que “enquanto não alcançarmos
esse objetivo, não teremos uma democracia racial e tampouco uma democracia. Por
um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na pedra de toque
da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte da civilização
moderna”.
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