“Inconstitucional”, “um desastre” e “um retrocesso
inimaginável”. Essas foram algumas das expressões utilizadas pela procuradora
do Ministério Público do Trabalho, Débora Tito, ao se referir à portaria
1.129/2017, publicada no Diário Oficial da União nesta segunda (16). A medida
do Ministério do Trabalho altera o conceito de trabalho escravo e dificulta a
fiscalização e o combate a essa prática.
“A portaria é absurda tanto do ponto de vista formal –
porque uma portaria não poderia derrogar a lei –, quanto do ponto de vista
material. O que está sendo dito ali é um retrocesso inimaginável, para um país
que tem o reconhecimento internacional pela sua luta contra o trabalho
escravo”, avaliou Débora Tito, que é coordenadora regional de Erradicação do
Trabalho Escravo em Pernambuco.
O artigo 149 do Código Penal define que quatro elementos
podem caracterizar trabalho escravo: servidão por dívida, condições
degradantes, jornada exaustiva e trabalho forçado. Passando por cima desta
legislação, a portaria estabelece que, para ser considerada a jornada exaustiva
ou a condição degradante, é necessário haver privação do direito de ir e vir do
trabalhador.
De acordo com a procuradora, o Ministério retrocede na
definição do conceito de trabalho escravo e restringe a sua tipificação a uma
situação que nem mesmo antes da abolição da escravatura existia
necessariamente.
“A portaria restringe o trabalho escravo só à situação das
algemas. A escravidão nunca foi justa, mas já foi legal. E, mesmo na época em
que ela era legalizada, muitas vezes os trabalhadores tinham o direito de ir e
vir. Tanto que vários quilombos foram formados assim. Os trabalhadores não
estavam necessariamente em cárcere privado, mesmo quando a escravidão era
legal”, criticou Débora.
Ela destacou que a liberdade tolhida pelo trabalho escravo
não é simplesmente a de ir e vir, como sugere a portaria. “Ao ler o texto, a
gente só pensa numa figura do trabalhador sendo açoitado, algemado. E o
trabalho escravo não é só isso. Você ser propriedade de outrem é você estar com
sua dignidade ferida ao ponto de você ser um objeto. O trabalho escravo cerceia
a liberdade de autodeterminação, a liberdade de o cidadão se entender como um
ser livre. Não é apenas o cerceio físico ou estar em cárcere privado”, disse.
A portaria estabelece ainda que a divulgação da chamada
“lista suja”, que reúne as empresas e pessoas que usam trabalho escravo,
passará a depender de uma “determinação expressa do ministro do Trabalho”.
Pessoas físicas ou jurídicas incluídas na lista não podem solicitar
financiamento público.
“Além disso, [o texto] diz que autos de infração têm que ser
lavrados com boletim de ocorrência, fotografias, enfim, uma série de
exigências. Ele realmente amarra toda a constatação de que há trabalho escravo,
tanto do ponto de vista formal, quanto na própria atuação dos auditores no
momento da inspeção. Nesse ponto, também é um desastre, porque cria requisitos
que praticamente impossibilitarão a autuação por trabalho escravo. Até quando
se encontrar alguém em cárcere privado vai ser difícil”, previu a procuradora.
Ela apontou ainda uma “usurpação de poderes”, com a publicação
das mudanças definidas pelo Executivo. “Está havendo uma interferência evidente
do Executivo no Judiciário. A instância administrativa agindo como se fosse uma
instância judicial”, afirmou, reiterando que a portaria é inconstitucional.
Na prática, as alterações – que agrada à bancada ruralista,
às vésperas da análise da denúncia contra Temer por organização criminosa e
obstrução de Justiça – dificultam a punição de flagrantes situações
degradantes.
Para Débora, o fato de a própria Secretaria de Inspeção do
Trabalho não ter sido consultada sobre as mudanças na regra só reforça a ideia
de que a portaria atende a objetivos políticos. “É algo totalmente político. É
mal redigida, vai contra a legislação. O próprio órgão do Ministério do
Trabalho que lida com isso não sabia de nada. Para mim, isso é a comprovação de
que foram motivações políticas, e do pior tipo de política. Uma moeda de troca
com setores conservadores, que são pegos pelo bolso. O vil metal está mandando
de novo”, lamentou.
Depois de ter sido denunciado pela Comissão Pastoral da
Terra em corte internacional, o Brasil passou a reconhecer formalmente, em
1995, a existência do trabalho escravo no país. A partir de então, uma série de
medidas foi adotada, entre elas a criação do grupo móvel de fiscalização, o
seguro-desemprego para trabalhadores resgatados, a prioridade para inserção no
Bolsa Família.
De lá para cá, 40 mil pessoas foram resgatadas da condição
de trabalho escravo, e o Brasil ganhou o reconhecimento internacional pelas
boas práticas na erradicação desse mal.
Agora, depois das alterações anunciadas nesta segunda, o
país deve começar a ser visto como exemplo a não ser seguido. O coordenador do
Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), Antônio Carlos de Mello Rosa, classificou a portaria como uma
regressão, que, a uma só vez, impede a fiscalização e esvazia a chamada
"lista suja".
Segundo Débora Tito, as novas regras findarão por esconder o
problema, maquiando as estatísticas. “Eles estão colocando o conceito de um
jeito que vão vender o peixe de que se erradicou o trabalho escravo, mas que,
na verdade, será deixar de olhar o problema como ele é. Estão colocando a
legislação de forma que não se vai mais conseguir configurar o trabalho escravo.
Ninguém vai mais conseguir atuar nesse sentido. Então vão zerar os dados, não
porque se resolveu a questão, mas porque não se olha mais o problema”,
encerrou.
Nesta terça (17), o Ministério Público Federal e o
Ministério Público do Trabalho recomendaram ao governo Michel Temer que revogue
a portaria que mudou as regras para a
fiscalização do trabalho escravo. O Grupo de Trabalho Erradicação do Trabalho
Escravo, da Defensoria Pública da União (DPU) também emitiu nota em repúdio às
alterações.
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