Escrito pouco mais de dez anos após a abolição da
escravatura, e publicado em Relíquias da Casa Velha (1906), o conto Pai contra
mãe é o único em que Machado de Assis trata de forma direta, e crua, a barbárie
da escravidão. Faz parte da obra da maturidade do escritor e revela, num texto
curto, suas excepcionais qualidades de observador agudo das contradições de seu
tempo.
Prosa Poesia e Arte traz o conto na íntegra, como parte do
conteúdo especial do Portal Vermelho sobre o Dia da Consciência Negra, marcado
nesta sexta-feira (20).
Pai contra mãe
A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá
sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se
ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé;
havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da
embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois
para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o
vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs
do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas
a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o
cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões.
Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda,
até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era
menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse,
mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram
muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem
pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas
repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não
era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque
dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que
raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a
correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro,
apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora,
quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem
lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o
nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a
quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa:
"gratificar-se-á generosamente", - ou "receberá uma boa
gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta,
figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa.
Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não
seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a
propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras.
Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a
necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma
vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem
que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, - em família, Candinho,- é a pessoa a quem se
liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar
escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por
querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a
si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço
entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a
todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na
rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois
de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que
dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois
de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de
que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas,
querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem
complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria
ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dois. Ela era órfã,
morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse
o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro
empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a
noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe
deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos.
Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a
ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só
para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves,
sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro
deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal
foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior
brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das
relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja,
tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o
amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia
a patuscadas.
- Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com
defunto. - Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na
casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis.
Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
- Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à
sobrinha.
- Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica
devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão
da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa,
como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de
tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam
que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e
outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo
daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia.
porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que
viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada,
Cândido e Clara riram dos seus sustos.
- Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que
espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e
assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo
com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela,
media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos
longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
- Vocês verão a triste vida, suspirava ela. - Mas as outras
crianças não nascem também? perguntou Clara. - Nascem, e acham sempre alguma
cousa certa que comer, ainda que pouco... - Certa como? - Certa, um emprego, um
ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem
gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter
com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se
já algum dia deixara de comer. - A senhora ainda não jejuou senão pela semana
santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o
nosso bacalhau... - Bem sei, mas somos três. - Seremos quatro. - Não é a mesma
cousa. - Que quer então que eu faça, além do que faço? - Alguma cousa mais
certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que
casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que
você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem
vintém. - Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não
me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste,
muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital
seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e
previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira
mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um
encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho
vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios,
copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados
os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo,
segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de
uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo
como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a
casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não
o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas
mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam,
mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos
não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos
novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e
numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio
bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves
começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos
primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se
tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido,
tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha,
naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia
vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda
que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu
senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre;
desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os
parentes do homem.
- É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo
entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-se
disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela
razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de
mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que
aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à
mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades,
menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente
os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
- Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho
que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu
ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em
verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que
espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar,
pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e
acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada,
esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. - Titia não fala por
mal, Candinho. - Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem,
seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer.
Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum
dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde,
quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos
com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar
nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém,
ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua.
Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as
costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a
primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes.
Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez
uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi
interrompida por alguém que batia à porta da rua.
- Quem é? perguntou o marido. - Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que
vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
- Não é preciso... - Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à
mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os
aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse
pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo,
ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao
gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação
de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
- Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da
porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava
nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas
contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em
vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para
casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a
pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com
pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia.
Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora
velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da
cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada
aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar
o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro;
emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo,
mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia
espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de
favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a
tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não
a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves
pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino,
e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite;
mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As
gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e
escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham
indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor
fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a
houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela
animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a
ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela
parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da
Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à
pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da
escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros
fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia
Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino
para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a
dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha
fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum
prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a
mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino;
seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso.
Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao
filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é
certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o
rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido
Neves começou a afrouxar o passo. - Hei de entregá-lo o mais tarde que puder,
murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la;
foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da
Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da
Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui
a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um
adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos
passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou,
achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante;
viria buscá-la sem falta.
- Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido,
atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No
extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se
dela. Era a mesma, era a mulata fujona. - Arminda! bradou, conforme a nomeava o
anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele,
tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que
ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu
logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse
pelo amor de Deus.
- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem
algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou
servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! - Siga! repetiu
Cândido Neves. - Me solte! - Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a
si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que
era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau,
e provavelmente a castigaria com açoites, - cousa que, no estado em que ela
estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
- Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir
depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara
na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes
cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da
Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava
pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi,
apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera.
Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas
em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
- Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. - É ela mesma. -
Meu senhor! - Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava
abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou
as duas notas de cinquenta mil réis, enquanto o senhor novamente dizia à
escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após
algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os
gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse
espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua
da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho
que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a
tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu
o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria
diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às
carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o
filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação,
perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é
verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da
fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a
fuga e não se lhe dava do aborto.
- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.
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