A História um dia cobrará a sociedade diante desse
extermínio. E nossos netos ou bisnetos pedirão desculpas pela inacreditável
apatia de seus avós e bisavós, que conseguiam dormir enquanto ocorria um
massacre.
Protesto realizado no Rio de Janeiro na última sexta-feira contra morte dos cinco jovens |
Por *Átila Roque
Não dá para saber se falta uma ou duas gotas, mas o caldo
está prestes a entornar. A chapa está quente, a paciência se esgotou, a
tristeza, a sensação de injustiça é muito grande. A dor e a raiva produzem
ódio. E o ódio não mede esforços nem recua diante de nada. Nossa frágil
democracia se encontra ameaçada pelo espírito mesquinho, egoísta e racista que
ainda viceja em nossa sociedade, incapaz de reagir e se indignar diante da
violência seletiva que acomete milhares de jovens Brasil afora.
Tenho experimentado um sentimento de vergonha por ser parte
de uma geração que tendo apanhado da polícia nos estertores da ditadura não
conseguiu deixar como legado para os nossos filhos um Estado que coloque a
defesa da vida e dos direitos de todas as pessoas em primeiro lugar. Não pensei
que veria o estado de direito, duramente conquistado, dando lugar a um estado
de exceção e barbárie.
Uma parte significativa da sociedade brasileira, em
particular as classes médias e altas, têm convivido como se não lhe dissesse
respeito, com a violência de uma polícia covarde que espanca adolescentes que
protestam contra fechamento de escolas, como presenciamos nos últimos dias em
São Paulo; e mata outros nas periferias de nossas cidades pelo simples fato de
serem jovens e negros. Precisamos encarar de frente que a violência e o racismo
continuam a fazer parte do sistema de práticas e valores que sustentam as
desigualdades e regulam as relações de poder na sociedade brasileira.
O mito do país pacífico e racialmente democrático faliu faz
tempo, mas ainda não foi devidamente exposto e admitido pela sociedade. Não
gostamos do que vemos quando nos olhamos no espelho. O sistema de justiça e
segurança pública cumpre o papel de reguladores da ordem e são os principais
operadores de um sistema que se esmera em garantir que cada um saiba qual é o
seu lugar e que não ouse reivindicar o direito à mobilidade social e espacial
não autorizada.
Carro em que estavam os jovens foi alvejado por 111 tiros |
A tragédia que se abateu sobre Wesley, Wilton, Roberto,
Carlos Eduardo e Cleiton, os jovens e adolescentes negros assassinados por
policiais no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, na zona norte do Rio de
Janeiro, não foi um caso isolado.
Nas favelas e territórios de periferia, o encontro entre
jovens negros e a polícia pode sempre ser fatal. Estamos diante de uma rotina em que a polícia
adentra as periferias e favelas com a disposição de matar. A quantidade de tiros
no carro em os rapazes se encontravam não deixa dúvidas sobre a intenção dos
policiais. Estes cinco jovens foram executados brutalmente em nosso nome, não
tenhamos ilusões, com armas e farta munição de guerra (111 tiros) financiada
pelos nossos impostos.
Mães pedem fim do extermínio dos jovens negros |
O pretexto da guerra contra o tráfico se presta a que
estados de exceção de direitos sejam, na prática, decretados nesses territórios
sob o olhar complacente da mídia, das autoridades e boa parte da sociedade.
"Dor de mães de filhos assassinados não tem preço", diziam cartazes durante o ato |
É duro dizer isso sabendo que o preço pago por muitos
policiais também é alto.
Em certa medida podemos dizer que os profissionais de
segurança pública que têm, com muita frequência a mesma origem social desses jovens,
morrem em uma escala muito alta, assassinados simplesmente por serem policiais.
A grande maioria, no entanto, fora de serviço. O ciclo de violência e a
engrenagem da guerra torna a vida do policial tão descartável quanto a dos
jovens que morrem em suas mãos, uma realidade somente comparável a situações de
guerra. Mas não estamos em guerra e mesmo a guerra tem regras.
Há poucos meses, a Anistia Internacional lançou o relatório
“Você matou meu filho – Homicídios cometidos pela Polícia Militar no Rio de
Janeiro”. A pesquisa indica que nos últimos cinco anos, os autos de resistência
representaram em média 16% do total de homicídios cometidos na capital
fluminense. Em 2012 os homicídios decorrentes de ações de policiais em serviço
chegaram a representar cerca de 20% do total de homicídios. Sob qualquer ponto
de vista estamos diante de um escândalo ético e de um retrato dramática da
falência sistêmica do sistema de segurança pública.
Cartaz reitera números das ações que vitimam os jovens negros |
A mesma pesquisa apontou o perfil das vítimas dos homicídios
decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro: 99,5% homens, 79% negros
e 75% jovens. A área de segurança pública (AISP) responsável pela maior
quantidade de mortes foi justamente a do 41º Batalhão da Polícia Militar, o
mesmo ao qual pertencem os policiais acusados de executarem com 111 tiros os
cinco jovens que tiveram a ousadia de transitar pela cidade e ultrapassar os
“muros” nem tão invisíveis que os condenava a não sair de seus territórios.
O Brasil vive um estado de emergência. Estamos a ponto de
perder a oportunidade histórica de acolher a potência da juventude das favelas
e das periferias para criar um país mais generoso e justo. Não é favor, mas
direito. E vai ser reivindicado de uma maneira ou de outra. A expectativa e a
aspiração à igualdade avançaram e não serão interrompidas. Ou paramos e damos
uma resposta agora ou será tarde demais. A panela não vai aguentar muito tempo
essa rotina de brutalidade e humilhação.
Jovens pedem fim do extermínio da população negra por parte do Estado |
A História, sempre ela, certamente um dia cobrará o silêncio
cúmplice da sociedade diante desse verdadeiro extermínio. E, espero, os nossos
netos ou bisnetos pedirão desculpas pela inacreditável apatia de seus avós e
bisavós que conseguiam dormir enquanto lá fora ocorria um massacre.
*Átila Roque é
Diretor Executivo da Anistia Internacional
Via – Opera mundi
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