Em uma reunião com um grupo de editores, há alguns meses,
Sérgio Herz, dono da Livraria Cultura, explicava os problemas de atraso nos
pagamentos a alguns dos empresários e tentava ganhar tempo.
Argumentava que não tinha o dinheiro, que precisavam dar um
voto de confiança ao grupo. A proprietária de uma das editoras retrucou: “Se
não tem dinheiro, como mantém uma revista de divulgação tão dispendiosa?”
Ato contínuo, Herz teria se insurgido contra a vontade do
próprio pai, Pedro Herz, e extinguido o veículo de divulgação da maior rede de
livrarias do país, a Cultura, que possui 18 lojas (tinha 30 antes de fechar
todas as Fnac).
A decisão de Herz antecipou uma série de medidas inócuas que
desembocariam, no último dia 26 de outubro, no ato de acatamento, pela Justiça,
do pedido de recuperação judicial da rede. O pedido informa que o grupo tem
dívidas de 285,4 milhões de reais.
A recuperação judicial implica a suspensão de ações e
execuções contra a empresa, e a decisão do caso da Cultura (tomada pelo juiz
Marcelo Barbosa Sacramone, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do
Foro Central Cível) determina que sejam mantidas em sigilo as relações de
funcionários e de bens particulares dos sócios, assim como os extratos
atualizados das contas bancárias.
A empresa atribui sua situação a uma crise que se arrasta
desde 2014, período em que o setor livreiro encolheu 40%. Dispensou 160
funcionários somente em 2018. Segundo sua assessoria, nem Pedro nem Sérgio Herz
estão falando sobre a situação no momento, dado que agora a gestão foi
transferida pela Justiça para o escritório Alvarez & Marsal.
Pouco antes do segundo turno das eleições, outra grande
cadeia de livrarias, a Saraiva, anunciou o fechamento de 20 das suas 104 lojas
físicas no país. Segundo o grupo, trata-se de uma estratégia de enxugamento e
de mudança em relação às plataformas digitais de venda de livros. As vendas
pela internet teriam chegado a 38,2% do seu faturamento, o que impulsionou a
mudança.
Mas sabe-se que a rede Saraiva é uma das que não têm
cumprido há algum tempo seus compromissos com os fornecedores. Sua movimentação
pode estar apenas mascarando um problema maior, já que não é de agora que o
mercado assiste à migração em massa dos consumidores para canais eletrônicos de
vendas, em detrimento das lojas físicas (movimento que
já se deu com impacto grande nos Estados Unidos e
Europa).
A tragédia do mercado livreiro pode estar antecipando uma
queda em estilo dominó: a maior parte das grandes editoras funciona no modelo
de consignação (fornece seu produto, livros, às livrarias, para receber
conforme são vendidos).
A consignação representa mais de 80% das vendas de uma
editora, segundo dados da Associação Nacional das Livrarias (ANL). Quando duas
das maiores redes de livrarias não conseguem fazer o acerto da venda
consignada, o mercado todo estremece. A ANL estima que uma meta de vendas de
10% do consignado seria uma média razoável para a lucratividade de uma
livraria.
Para piorar o quadro, a agora sob intervenção rede de
livrarias Cultura tinha assumido, em 2017, a operação das lojas Fnac no Brasil,
mas a motivação é ainda obscura. A francesa Fnac Darty, na verdade, investiu
150 milhões de reais para que a Cultura renegociasse passivos.
Em poucos meses, a brasileira fechou todas as 12 lojas Fnac
no País. O interventor que agora assume essa caixa-preta é o mesmo designado
para o caso da Editora Abril, e é curioso que nunca se fale em confisco dos
bens dos envolvidos para amortizar prejuízos.
Além de uma sequência de incógnitas, o caso Cultura é uma
comédia de erros deliberados: em 2011, os Herz tinham conseguido do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) um financiamento de 31,7
milhões de reais para expansão da rede; em 2013, voltou ao BNDES e pegou mais
28 milhões. Visava a modernização e ampliação de unidades (incluindo suas lojas
Geek.etc.br) e e-commerce.
Mas parece que a Cultura não investiu no saneamento das
dívidas. Na quinta-feira (25), funcionários demitidos da Fnac de Brasília
fizeram uma manifestação na Livraria Cultura do Shopping Casa Park, em protesto
contra o não recebimento das verbas rescisórias.
Poucos dias antes, no dia 16, ex-funcionários das unidades
da Fnac em São Paulo também exigiram em público o recebimento de direitos
trabalhistas. O último salário fora pago no dia 1º de setembro, e os
trabalhadores não receberam o aviso
prévio.
“Esta é uma circunstância preocupante se considerarmos que o
Brasil sofre de um problema endêmico: o número de leitores é baixíssimo e, por
extensão, a quantidade de livros publicados e a tiragem”, diz Eduardo Saron,
diretor do Itaú Cultural.
A instituição tem pilotado a campanha “Leia para uma
criança. Isso muda o mundo”, além de bancar o Prêmio Oceanos de Literatura.
Saron vê a crise das livrarias como decorrência de um problema estrutural que
deve ser encarado pelo Estado brasileiro, por um grande programa nacional de
estímulo ao livro e à leitura.
O problema é que não há políticas públicas para o livro há
um bom tempo, e nada parece demonstrar que o próximo governo tenha o menor
interesse em lidar com o tema.
Pesquisa divulgada no ano passado pelo Instituto Paulo
Montenegro (IPM) aponta preocupantes indicadores de Alfabetismo Funcional
(Inaf). A pesquisa revelou que 38% dos estudantes no Ensino Superior não sabem ler
e escrever plenamente, não dominam habilidades básicas de leitura e escrita.
A mesma pesquisa indicou que apenas 2 em cada 10
universitários são considerados alfabetizados proficientes. “Portanto, a
solução não é apenas de ordem econômica ou pontual, mas sistêmica nas políticas
públicas e de mobilização nacional, envolvendo o Estado, empresas e toda a
sociedade”, argumenta Saron.
Segundo o editor Haroldo Ceravolo Sereza, ex-presidente da
Liga Brasileira de Editoras (Libre), as crises das livrarias Cultura e Saraiva
têm motivações distintas e a presença da Amazon no Brasil apenas intensificou
um problema que vinha de antes. “No caso da Cultura, o crescimento com recursos
do BNDES foi feito sem um projeto claro de rede, ao sabor do vento”, analisa.
Sereza, dono da Alameda Editorial, vê um problema de fundo político nas crises.
“A rede Cultura esvaziou-se de um projeto cultural, que era seu principal
alicerce. Para completar, embarcou de cabeça num projeto político autoritário e
antipopular, o que hoje, no Brasil, significa ser anticultural: vivemos um boom
de produção e consumo intelectual por negros e mulheres, apenas para citar as
duas ‘minorias’ mais representativas socialmente.”
Portanto, por sua histórica ligação com a intelectualidade
(foi fundada por Eva Herz em 1947), a Cultura deveria ter sido fiel a esse tipo
de produção e seguido sua vocação humanística.
Na avaliação de Sereza, a crise tem múltiplos fatores, como
a redução do preço médio dos livros nos últimos anos, o que os grandes players
não administraram bem. A recuperação judicial da Book Partners, em abril deste
ano, seria também resultado dessa disfunção do mercado editorial.
“Além da redução do preço médio do livro, a cadeia adotou
políticas de investimento em marketing que jogaram para fora do setor muito
dinheiro.”
Em meio a esse quadro, há movimentos que podem ser
considerados até surpreendentes. Na terça-feira 30, a companhia Penguin Random
House, maior grupo editorial do mundo, comprou mais 25% da editora brasileira
Companhia das Letras, assumindo seu controle total com 70% das ações.
A Random House, Inc. é uma das principais editoras em língua
inglesa do mundo. “O cenário em que estamos no momento seria ideal para eles
adiarem mais uma vez”, disse Luiz Schwarcz, presidente da Companhia das Letras.
“No entanto, foi exatamente o contrário. Na avaliação deles, essa crise é
passageira e o mercado editorial voltará a se desenvolver”, afirmou.
Fonte: Carta Capital
Via - Portal Vermelho
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