A ligação de Lima Barreto (1881-1922) com a luta do povo foi
múltipla. Escritor que retratou a opressão cotidiana, simpatizou com o
anarquismo e foi um dos propagandistas brasileiros da Revolução Russa de 1917.
Escritor inquieto, sofreu e enfrentou o preconceito racial.
Lima Barreto foi um escritor e jornalista brasieliro |
Seu Diário Íntimo (publicado postumamente, em 1953) é um
relato humano e sensível da consciência que tinha do absurdo que é separar os
homens pela cor de sua pele, considerar inferiores aqueles de pele mais escura.
E também uma comovente denúncia do racismo.
Leia trechos da obra:
Diário Íntimo
Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me
reparo. Ia eu pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado dirigiu-se
a mim, inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira vez, a coisa
feriu-me um tanto a vaidade, e foi preciso tomar-me de muito sangue frio para
que não desmentisse com azedume. Eles, variada gente simples, insistem em
tomar-me como tal, e nisso creio ver um formal desmentido ao professor Broca
(de memória). Parece-me que esse homem afirma que a educação embeleza, dá,
enfim, outro ar à fisionomia. Porque então essa gente continua a me querer
contínuo, porque? Porque... o que é verdade na raça branca, não é extensivo ao
resto; eu, mulato ou negro, como queiram, estou condenado a ser sempre tomado
por contínuo. Entretanto, não me agasto, minha vida será sempre cheia desse
desgosto e ele far-me-á grande. Era de perguntar se o Argolo, vestido assim
como eu ando, não seria tomado por contínuo; seria, mas quem o tomasse teria
razão, mesmo porque ele é branco. Quando me julgo — nada valho; quando me
comparo, sou grande. Enorme consolo
Um escritor, um literato, apresenta ao público, ou dá
publicidade a uma obra; até que ponto um crítico tem o direito de, a pretexto
de crítica, injuria-lo?
Um crítico não tem absolutamente direito de injuriar o
escritor a quem julgar.
Não se pode compreender no nosso tempo, em que as coisas do
pensamento são mostradas como as mais meritórias, que um cidadão mereça
injúrias, só porque publicou um livro. Seja o livro bom ou mau. Os maus livros
fazem os bons, e um crítico sagaz não deve ignorar tão fecundo princípio.
Ao olhar do sábio, o vício e a virtude são uma mesma coisa,
e ambos necessários à harmonia final da vida; ao olhar do crítico filósofo, os
bons e maus livros se completam e são indispensáveis à formação de uma
literatura.
Se o crítico tem razões particulares para não gostar do
autor, cabe-lhe unicamente o direito de fazer, com a máxima serenidade, sob o
ponto de vista literário, a crítica do livro.
Dizem que o amor faz grandes obras. O ódio também poderá
faze-las; mas, para isso, como no caso do amor, é preciso conter-se. No domínio
do pensamento, as paradas de sentimento são extraordinariamente fecundas.
Em geral, ao começar, o temperamento literário é delicado, é
fraco, é semifeminino, diga-se, e ninguém poderá prever sob que aspecto, sob
que forma, a injúria vai reagir nele.
Balzac, Lord Rhoone, se houvesse sido injuriado, chegaria a
ser o Honoré de Balzac do Père Goriot?
Em resumo, se o crítico ama as coisas do pensamento, e
sobretudo estas, deve ter sempre em mira a sua prosperidade; e, creio, a
injúria não é o melhor meio para obtê-la.
Os negros fizeram a unidade do Brasil.
O negro é recente na terra. Os negros, quando ninguém se
preocupava em arte no Brasil, eram os únicos (O. Duque, Arte Brasileira).
Os produtos intelectuais negros e mulatos, e brancos, não
são extraordinários, mas se equivalem, quer os brancos venham de portugueses,
quer de outros países.
Os negros diferenciam o Brasil e mantêm a sua independência,
porquanto estão certos que em outro lugar não têm pátria.
Se um viajante, sábio etc. etc., sem saber a história do
passado, fosse visitar os árabes atuais, negaria qualquer capacidade
intelectual a eles.
A capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos
brancos, a posteriori.
A energia só se tem revelado depois de lenta submissão
(hunos, plebe romana, bárbaros em geral).
A coragem é da mesma maneira. O português, que é humilde
entre nós, é um povo valente; o fim a que se propõe, obriga-o a curvar-se.
Discutindo a incapacidade mental desta ou aquela raça, temos
o ar de dizer com o poeta grego — os bárbaros, gente vil que não ama a
filosofia e ciências; ele se dirigia ao avô de Kant e ao tio de Descartes.
Se a feição, o peso, a forma do crânio nada denota quanto a
inteligência e vigor mental entre indivíduos da raça branca, porque excomungará
o negro?
Os árias, quando no plateau da Bactriana, nada valiam;
emigrando, após séculos de fermentação, brilharam numa cultura superior; porque
os negros, transportados de África pelo tráfico, não desenvolverão uma
civilização ou concorram para ela? Esse fenômeno de mudança de habitat é
importante para o estudo.
A ciência é um preconceito grego; é ideologia; não passa de
uma forma acumulada de instinto de uma raça, de um povo e mesmo de um homem.
Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil,
especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia
literária, artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os
que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não têm
por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente.
Entretanto, é por meu pai e, por assim ser, levarei a cruz ao Calvário, pois
que, se meu pai fez tal coisa, foi por supor que nunca nos atingiria, mas a
desgraça não quis e a coisa nos atingiu.
O filho da tal negra despediu-se do emprego em que o pus
para ficar em casa escrevendo versos.
É o que se dá comigo e me faz dia e noite sangrar de dor.
Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero,
há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa,
do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançosa a razão de ser
disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca
farei. Há coisas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a
mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói — cepticismo que,
atingindo as coisas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha própria
entidade —, nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha
vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta.
Hoje, pois, como não houvesse assunto, resolvi fazer dessa
nota uma página íntima, tanto mais íntima que é de mim para mim, do Afonso de
vinte e três anos para o Afonso de trinta, de quarenta, de cinquenta anos.
Guardando-as, eu poderei fazer delas como pontos determinantes da trajetória da
minha vida e do meu espírito, e outro não é o meu fito.
Aqui bem alto declaro que, se a morte me surpreender, não
permitindo que as inutilize, peço a quem se servir delas que se sirva com o
máximo cuidado e discrição, porque mesmo no túmulo eu poderia ter vergonha.
Veio-me à idéia, ou antes, registro aqui uma idéia que me
está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se descrevam a vida e o
trabalho dos negros numa fazenda. Será uma espécie de Germinal negro, com mais
psicologia especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama sombrio, trágico
e misterioso, como os do tempo da escravidão.
Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira que
esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-prima, adiá-lo-ei para mais
tarde.
Temo muito pôr em papel impresso a minha literatura. Essas
ideias que me perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos
do romance, e o grande amor que me inspira — pudera! — a gente negra, virá, eu
prevejo, trazer-me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei
me pôr acima delas. Enfim — “une grande vie est une pensée de la jeunesse
réalisé par l’âge mür”, mas até lá, meu Deus!, que de amarguras!, que de
decepções!
Ah! Se eu alcanço realizar essa ideia, que glória também!
Enorme, extraordinária e — quem sabe? —uma fama europeia.
Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a
proximidade simplesmente aparente das coisas turbará todos os espíritos em meu
desfavor; e eu, pobre, sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei
viver perseguido, amargurado, debicado?
Mas... e a glória e o imenso serviço que prestarei a minha
gente e a parte da raça a que pertenço.
Tentarei e seguirei avante. “Alea jacta est”.
Se eu conseguir ler esta nota, daqui a vinte anos,
satisfeito, terei orgulho de viver!
Deus me ajude!
É incrível a ignorância dos nossos literatos; a pretensão
que eles possuem não é secundada por um grande esforço de estudos e reflexão.
Presumidos de saber todas as literaturas, de conhecê-las a fundo, têm repetido
ultimamente as maiores sandices sobre o Gorki, que anda encarcerado na Rússia,
por motivo dos levantes populares lá havidos.
Há dias, conversando com o Tigre, ele me disse que esse
Gorki nada valia — escrevera uns contos, coisas de fancaria socialistica. É
incrível, mas é verdade.
Quando eu lhe disse que o Máximo tivera o Prêmio Nobel, ele
se admirou — não sabia.
Entretanto, Tigre é uma das esperanças da geração moderna.
Domingos, bom rapaz, algo mais ilustrado que a maioria dos
novéis literatos, cerebrino autor do Sê Feliz, vai fazer um discurso sobre o
Bordalo Pinheiro.
Não acredito que essa coisa do Bordalo seja sincera. Como
caricaturista, ele era um pesadão, a sua caricatura era alguma coisa barroca,
com os motivos portugueses desgraciosos, folhas de parra, pipas de vinho,
suínos, etc. etc.
Desenhista, eu o não conheço. O que se salva nele é o
ceramista, e esse só alcança a Portugal, com quem, eu penso, ele não há de
querer repartir a glória. Sendo assim, é positivamente idiota e sem razão essa
manifestação que lhe vão fazer.
Eu tenho notado nas rodas que hei frequentado, exceto a do
Alcides, uma nefasta influência dos portugueses. Não é o Eça, que inegavelmente
quem fala português não o pode ignorar, são figuras subalternas: Fialho e
menores.
Ajeita-se o modo de escrever deles, copiam-se-lhes os
cacoetes, a estrutura da frase, não há dentre eles um que conscienciosamente
procure escrever como o seu meio o pede e o requer, pressentindo isso na
tradição dos escritores passados, embora inferiores. É uma literatura de
concetti, uma literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas, não
há neles um grande sopro humano, uma grandeza de análise, um vendaval de
epopéia, o cicio lírico que há neles é mal encaminhado para a literatura
estreitamente pessoal, no que de pessoal há de inferior e banal: amores ricos,
mortes de parentes e coisas assim. A pouco e pouco, vou deixando de os
freqüentar, abomino-lhes a ignorância deles, a maldade intencional, a lassidão,
a covardia dos seus ataques.
Fui ontem a São Gonçalo. É um município limítrofe ao de
Niterói. Fui à casa do Uzeda. Uzeda é um segundo oficial da Secretaria da
Guerra, casado com uma professora pública do lugar.
Embarquei às oito e meia no Largo do Paço; fazia uma manhã
quente e feia, ensombrada denuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da
Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos.
Soberbamente insuportável. Indagando da produção do
município, não me soube informar com simplicidade. Atribuiu a falta da lavoura
à indolência do povo. Tive vontade de perguntar se ele, engenheiro, tendo
estudado a química, física e história natural, dava um exemplo salutar,
cultivando o sítio onde morava. Calei-me, e foi dizendo bobagens. Fez uma
crítica severa às tarifas do Tramway Rural Fluminense. É isto uma pequena
estrada de ferro, com carros abertos ao jeito de bondes, que liga as Neves ao
município de São Gonçalo. E uma coisa tosca, necessariamente exigindo para a
sua manutenção uma série de medidas empíricas, que a prática dita; o idiota do
Pinho quer que ela se guie pelos princípios tarifários que regem os fretes das
grandes vias-férreas. Disse-me coisas proveitosas, que, por exemplo — o esforço
da tração era o mesmo na descida que na subida. É profundo.
As Neves não tiveram, para os meus olhos, nada de notável.
Têm o aspecto comum dos nossos postos afastados e edificados. Casas baixas,
pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e
pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas
portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas — tristes, de longos
olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes,
fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem
esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida
ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou
transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia.
Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída
sobre a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera urbana,
para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há também as velhas casas de
colunas heterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e o sistema
da antiga lavoura. Corre o caminho por entre colinas, há pouca mata,
laranjeiras muitas, algumas mangueiras.
Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da
minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas
frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam vagas notícias das origens
da minha avó materna, Geraldina . Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram
lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela cria.
Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais
simpatia. Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho
da corte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia
ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta
anos. Entretanto, eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho
que me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus. Quem sabe se eu
não tinha parentes, quem sabe se não havia gente do meu sangue naqueles párias
que passavam cheios de melancolia, passivos e indiferentes, como fragmentos de
uma poderosa nau que as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços
vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de sua força interior.
Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu
não pude deixar de lembrar-me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do
seu, depois de volta de três quartos de século, voltava àquelas paragens
radiante de mocidade, saturado de noções superiores, sonhando grandes destinos,
para ser recebido em casa de pessoas que, se não foram senhores dele, durante
algum tempo, tinha-o sido de outrem da mesma origem que o meu.
Eu vi também pelo caminho uma grande casa solarenga, em meio
de um grande terreno, murado com um forte muro de pedra e cal. Estava em
abandono, grandes panos do muro caídos e as aberturas fechadas com frágeis
cercas de bambus. Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura saíra
minha avó, tinha se extinguido, e que deles, diretamente, pelos laços de sangue
e de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de
várias condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha.
Ela fora mais caipora do que aquele muro sólido, porque
extinguira-se, caíra de todo e não deixara da sua linha direta nenhum rastro.
Cheguei à casa do Uzeda.
Antes vi a vila. Há uma grande rua principal, com uma imensa
matriz a cavaleiro dela, e toscas casas que a arruam. O trem passa embaixo e,
junto ao paço municipal, é macadamizada. A câmara municipal é um caixão
ignóbil. Não sei porque nós não sabemos fazer esses edifícios com o gosto que
os arquitetos da Idade Média faziam os dos seus burgos. Que infâmia é a que vi!
Entretanto, é moderna, tem menos de vinte anos. A capela tem o acabamento das
torres em pirâmide; é sem gosto e soturna; não há uma casa com sentimento, e a
gente tem o que ver, apenas nas das colunas, em que a escravidão pôs seus
sofrimentos e as suas recordações.
A mulher do Uzeda é rapariga anêmica, dessas nossas que a
mocidade sabe dar um brilho singular com a sua fragilidade, mas que a
maternidade e o tempo empanam e estiolam de modo lastimável. É morena, de
curtos cabelos. Rosto em V, bom, para um rapaz inteligente, e que nela, com
seus hábitos de paciência que o professorado dá, empresta uma singular
fisionomia de freira, que o olho direito mais estreito faz quebrar com certa
canalhice.
Do Portal Vermelho, José Carlos Ruy
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