“- Ei, índio.
- O que foi?
- Verdade que você vai invadir minha casa?
- Não é assim”
O diálogo acima, relatado por uma liderança indígena, não é
eventual, mas uma realidade do dia a dia para as 14 comunidades indígenas Avá
Guarani, ocupantes de territórios no entorno das cidades de Guaíra e Terra
Roxa, região Oeste do Paraná, na relação tensa com a comunidade local e com
produtores rurais da região.
O racismo e a hostilidade local contra os povos indígenas
são constantes. Embora a repercussão da mídia local seja recente, o conflito
iniciou há treze anos com a ocupação da aldeia Marangatu, em 2005. Hoje, 14
áreas foram recuperadas pelo movimento indígena, onde hoje vivem 2100 guaranis.
Atualmente existem 15 ações de despejo forçado emitidas às
ocupações. Por enquanto, a partir de intermediação do Ministério Público, não
acontece a execução de despejo, mas novas ocupações também não serão realizadas
pelos guaranis.
Esse frágil acordo permanece ao longo da realização de um
Grupo de Trabalho (GT) nacional, convocado por Funai e Ministério Público, que
tem um ano para realizar um laudo sobre a demarcação de terras na região.
Um 2018 turbulento
“Se sairmos, vamos voltar”, avisa o jovem cacique Nei*, da
aldeia Pohã Renda, em Terra Roxa, uma aldeia de quase noventa pessoas. Ele
define como irreversível o atual movimento de retorno dos povos guarani para
Guaíra, que consideram sua região de origem.
Caso as terras não sejam demarcadas, em 2018, a disputa na
região entre os Avá-Guarani, proprietários e empresas locais deve se
intensificar. Na avaliação de Paulo Porto Borges, vereador de Cascavel (PC do
B), o poder público, a prefeitura e câmara de vereadores de Guaíra tem
alimentado o discurso de medo e ódio na comunidade local, ao não tratar o
conflito de maneira objetiva e tomar partido contrário aos indígenas.
Para o vereador, como a demarcação é um fato irreversível, o
poder público deveria preparar as condições nesse sentido. “A relação (dos
indígenas) com a prefeitura é muito ruim, a prefeitura apenas tolera a presença
indígena, posicionada ao lado do agronegócio. A prefeitura e a casa
legislativa, em vez de se colocarem como órgãos mais independentes, são
entidades posicionadas, o que alimenta o preconceito”, critica.
Borges enxerga que o discurso do medo tem sido galvanizado
politicamente na região, o que avalia como temerário. “Evandro Roman (PSD),
Osmar Serraglio (MDB) veem no aumento da disputa formas de colher votos em cima
do medo. São figuras que, caso aconteça alguma tragédia em Guaíra, a
responsabilidade passa por eles”, afirma Porto. No final de 2017, Serraglio
recebeu no seu gabinete, em Brasília, o prefeito de Terra, Roxa Altair de Pádua,
e representantes do agronegócio local, da OAB de Guaíra e Wagner José
Rodrigues, do Sindicato Rural de Terra Roxa.
Desconfiança com encaminhamentos
Os indígenas, por sua vez, não demonstram muita confiança no
processo de grupos de trabalho e nos encaminhamentos para a demarcação.
A família de Juçara*, vice-cacica da aldeia Y Hovy, próxima
ao centro de Guaíra, critica a lentidão da Fundação Nacional do Índio (Funai) e
de Itaipu, e aponta que 2018 pode ser marcado por resistência das aldeias se
não houver demarcação. “Não dá para mostrar que tudo está tranquilo, vamos
mostrar resistência”, aponta.
Tensão histórica
Especialistas ouvidos pela reportagem enxergam um componente
particular no caso de Guaíra. Diferente do Mato Grosso do Sul, o conflito no
Oeste do Paraná acontece entre ocupantes, pequenos e médios produtores. Mas as
áreas ocupadas também se dividem entre uma antiga empresa do agronegócio, caso
da Mate Larangeira, a Itaipu Binacional e a mineradora Andreis LTDA.
Josemar Ganho, ex-secretário de planejamento de Guaíra,
defende que parte da responsabilidade pela vinda de guaranis para a região é
dos próprios proprietários, que contratavam “parte da mão de obra indígena,
precária, que não apresentava ameaça trabalhista”, denuncia.
Num olhar histórico, os povos afirmam que a região, banhada
pelo Rio Paraná, na fronteira com Salto del Guayrá (Paraguai) é um local onde
sempre viveram e se refugiaram, desde o período da invasão colonizadora. É
terra de seus antepassados.
Juventude indígena assume relação com a sociedade
Nas comunidades visitadas pela reportagem, as lideranças são
jovens, característica comum a muitas áreas. Eles possuem contas atuantes em
redes sociais, articulam-se via celular e conhecem a situação em outras regiões
do país.
“Eu mesmo não fazia ideia da luta pela terra, luta política
grande, não só em Guaíra, mas em todo o Brasil”, afirma Claudio*, liderança da
comunidade Y Hovy.
Nei explica que houve uma separação entre o contato político
dos indígenas com o mundo da política e dos brancos, a cargo de lideranças
jovens como ele. “Desde pequeno, converso com os brancos”, enfatiza. Ele passou
no curso de Direito da Unioeste, em Cascavel, e é um dos dez estudantes
oriundos de comunidades que passaram na universidade em 2017.
Problemas imediatos
Ao lado do problema estrutural de violência, racismo e
tentativa de expulsão dos territórios, há questões imediatas que dificultam a
vida nas comunidades indígenas.
José*, liderança da comunidade Marangatu, elenca uma série
de problemas para os quais a prefeitura de Guaíra não dá resposta. Desde o
fornecimento de telhas até a atual ausência de funcionários da Funai na cidade.
A falta de documentação para jovens, adultos e
recém-nascidos e conflitos em torno do acesso à água também são frequentes.
Plataforma Logística de Guaíra: mais um conflito?
A ampliação Plataforma Logística de Guaíra também coloca
mais insegurança para os indígenas O projeto de integração de cidades
paranaenses com estados como Mato Grosso do Sul
para transporte começou há 10 anos, com a construção da Ferroeste. Esse
corredor que prevê integrar modais como hidrovias, ferrovias, rodovias e
aerovias passa onde está instalada umas das aldeias de Guaíra.
Josemar Ganho, secretário de planejamento de 2013 a 2014 em
Guaíra, durante gestão do ex-prefeito Fabian Venduscrolo, não vê o projeto como
contraditório à posse dos indígenas pela terra. Responsável pelo plano diretor
e levantamento territorial de toda a situação do município, Ganho defende a
execução do projeto e, ao mesmo tempo, a garantia da alocação das comunidades
para o que classifica de “pequenos assentamentos”. “São comunidades
tradicionais que têm que ter direito a essas áreas”, aponta.
*Seguindo metodologia de outros estudos na região, os nomes
foram alterados para evitar qualquer forma de perseguição ou ameaça contra os
entrevistados.
Edição: Franciele Petry e Júlia Rohden
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