Que país é este? Uma mulher negra, bonita, inteligente, uma
política eleita, uma mãe, uma filha, o amor de alguém, recebe quatro tiros na
cabeça numa emboscada. Pam, pam, pam, pam. Seu crânio ficou tão destroçado que
não foi possível abrir o caixão no funeral para que seus entes queridos se
despedissem do seu rostinho. Sua filha adolescente não pôde lhe dar o último
beijo. Qualquer ser humano se sentiria tocado com uma brutalidade dessas. Menos
a direita brasileira.
Qualquer ser humano com sensibilidade para sentir a dor do
outro, para se colocar no lugar do outro, se sentiria indignado com a covardia
de matar uma mulher não porque ela estivesse armada, ou cometendo algum crime,
mas por pensar e por expor suas ideias. Os únicos “crimes” de Marielle Franco: ser
contra o sistema e ser negra; defender os irmãos da favela da violência
policial; denunciar o genocídio dos jovens negros. Qualquer ser humano se
sentiria indignado com a tragédia da morte de uma inocente. Menos a direita
brasileira.
Percebe-se, pelas reações de direitistas nas redes sociais,
que quem defende “direitos humanos para humanos direitos” na verdade há muito
perdeu a humanidade, se é que algum dia a possuiu. É gente incapaz de sentir
compaixão pelo próximo, a não ser que sejam pessoas de sua própria família. Que
desconhece o significado da palavra “empatia” simplesmente porque não possui em
si este sentimento. São aleijados de empatia. Não só são incapazes de se
solidarizar com a dor e a tristeza alheias, como tripudiam delas, pisam em cima.
Em vez de chorar a perda sofrida pelo outro, dizem que é “mimimi”.
Isso não é só impressão: estudos feitos nos Estados Unidos
mostram que existe um “déficit de empatia” por lá. Nas últimas três décadas, a
capacidade de se sentir solidário à dor do outro vem caindo dramaticamente
entre os jovens. Um estudo de 2010 da Universidade de Michigan mostrou que os
estudantes norte-americanos de hoje possuem 40% a menos de empatia do que os
jovens de 1979. De acordo com o estudo, os estudantes em geral se descrevem cada
vez menos como “sensíveis” ou “preocupados” com seu semelhante, e admitem que a
“desgraça alheia” não os perturba.
Assistimos no Brasil um fenômeno similar em relação à
execução da vereadora do PSOL. Com a participação de um deputado, presidente do
DEM do Distrito Federal, de uma desembargadora e de (de)formadores de opinião
reacionários, estes seres humanos desumanizados dedicaram os últimos dias a
achincalhar e vilipendiar a memória de Marielle Franco, a ponto de um portal de
grande audiência passar o domingo com o desmentido no alto da homepage:
“Marielle não foi casada com Marcinho VP nem eleita pelo Comando Vermelho”.
Algo inútil, porque o mais grave não é que se espalhem boatos, é que os
espalhadores de boatos sabem que os boatos são boatos. Espalham mentiras
propositalmente.
Faz parte da estratégia de “melhorar” a execução de Marielle
caluniá-la, transformando a vítima em culpada, costume manjado da
extrema-direita. A mulher é culpada de seu próprio estupro porque “provocou” ao
usar roupa curta e sexy; a mulher é culpada de seu próprio espancamento porque
“provocou” o marido; a mulher é culpada de sua própria execução porque
“provocou”. São raciocínios gêmeos de “é pobre porque não se esforçou”.
Todos os dias, desde a última quarta-feira, tenho recebido
prints de postagens abomináveis sobre a vereadora executada. Da síndica de um
prédio em Curitiba ao bolsominion do Pará, perfis de direita compartilham
mentiras e enxovalham a biografia de uma pessoa barbaramente assassinada que
tudo que fez na vida foi lutar contra a violência, apenas porque tinha uma
ideologia diferente da sua.
O racismo fica explícito nas calúnias. Ora, Marielle não
pode ser uma mulher negra que estudou e se tornou uma socióloga reconhecida,
uma vereadora campeã de votos no Rio de Janeiro. A “meritocracia” que eles
tanto elogiam não serve para ela. Marielle tem que ser “bandida”, usuária de
drogas, ter ligações com o tráfico e com o crime organizado. Assim eles podem
dormir com a consciência tranquila.
Eu não vou dar voz a estas aberrações, não vou fazer com que
seu discurso de ódio reverbere ainda mais. Só vou lamentar a perda de
sentimentos como solidariedade, amor ao próximo, respeito, tolerância. O pior é
que muitas destas pessoas sem coração se dizem “cristãs”. Esta, no fundo, é a
maior mentira de suas vidas.
Cynara Menezes
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