Torturas, assassinatos, perseguições e violações de direitos
humanos do regime militar ainda atormentam o presente.
O Ato Institucional nº5 foi instaurado em 13 de dezembro de
1968 e permaneceu até 1978 / (Foto: Reprodução).
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Por Lu Sudré
“Eu comecei a ser torturado no momento em que cheguei lá. O
capitão Albernaz, que já era conhecido como um dos piores carrascos do
DOI-CODI, me disse: 'Começa a falar porque a guerra acabou pra você. Se não
falar o que sabe, vai virar presunto.’ Esse era o termo que usavam no esquadrão
da morte para os cadáveres que ‘surgiam’, que eram encontrados nos terrenos
baldios de São Paulo, assassinados pela polícia.”
Essa é apenas uma das fortes memórias que Anivaldo Padilha,
preso político da ditadura militar brasileira (1964 - 1988), carrega consigo.
Militante da Ação Popular (AP), líder da juventude metodista e da articulação
ecumênica no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha é um
sobrevivente da repressão instaurada pelo Ato Institucional 5 (AI-5).
Assinado há exatamente 50 anos, em 13 de dezembro de 1968, o
AI-5 institucionalizou a perseguição política aos seus opositores e autorizou
uma série de medidas de exceção. Entre elas, o fechamento do Congresso
Nacional, a intervenção em estados e municípios e a suspensão de direitos
políticos de qualquer cidadão. Mais de 170 mandatos parlamentares foram
cassados no período.
Detido pela Operação Bandeirantes (OBAN), em 1970, criada
com o objetivo de combater e caçar organizações que faziam oposição ao regime
militar em São Paulo, Padilha ficou preso durante dez meses. Os três primeiros
foram no DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão inaugurado após o golpe
militar de 1964.
Ao se negar a passar informações sobre o paradeiro de outros
militantes e organizações clandestinas, foi vítima de tortura frequentemente.
“Falei que não sabia de nada, neguei. Fui imediatamente torturado com choques
elétricos, pancadas, com a cadeira do dragão (que era uma cadeira elétrica) e
ameaçado de ser colocado no pau de arara. Fui torturado durante várias horas no
primeiro dia e jogado na cela”, conta o ex-preso político.
“Entrei em crise. Por um lado, já tinha experimentado o que
me esperava nos próximos dias, sabia que as torturas iriam se intensificar.
Claro que tinha medo, tinha medo das torturas, as dores são terríveis. Tinha
medo de não conseguir aguentar. Com a dor da pancada, ao levar uma surra de
ramos, era possível estabelecer certo controle, mas ainda assim era muito
difícil. Com os choques elétricos não. Os choques elétricos nos levam ao
desespero”, continua Padilha, indiciado por infiltração comunista na igreja
metodista, a qual frequentava desde sua infância.
Para ele, o ato institucional possibilitou a fase mais
sangrenta e autoritária do golpe militar. “Com o AI5, foi estabelecido um
regime de terror no Brasil muito pior do que a partir de 1964. Um regime de
terror que estabeleceu a tortura como um método sistemático de interrogatório,
de assassinato e de desaparecimento forçado.”
Contexto histórico
Renan Quinalha, advogado e ativista dos direitos humanos,
explica que o AI-5 suspendeu todos os direitos individuais e liberdades
públicas, o que fez com que o Estado não tivesse nenhum tipo de controle ou
participação social. Após 1964, o processo de centralização e concentração do
poder na mão do Executivo, sob comando dos militares, cresceu gradativamente,
até chegar ao seu ápice em 1968.
Segundo Quinalha, o golpe militar foi uma reação aos avanços
progressistas que aconteceram devido às reformas de base do governo João
Goulart e mudanças culturais na sociedade. Já o AI-5 foi instaurado para
exterminar a articulação da luta armada e das mobilizações estudantis em 1966,
que passaram a crescer e se expandir em outros setores da sociedade. Em 1968, a
Marcha dos Cem Mil, por exemplo, reuniu milhares de populares e artistas contra
o regime.
“O AI-5 foi uma tentativa de endurecimento justamente porque
a ditadura sentia que não estava conseguindo manter o controle da sociedade.
Nem manter uma aparência de normalidade, de regularidade. Depois do AI-5 há um
refluxo de todos esses movimentos. Ele interrompe esse processo de mobilização
que vinha dos anos anteriores”, afirma o especialista.
A partir de então, o sistema de vigilância de informações e
espionagem da ditadura passou a atuar de maneira muito mais livre, sem a
possibilidade real de um controle judicial dos abusos e violações dos direitos
humanos por parte dos militares.
Na opinião de Quinalha, uma das violações de direitos mais
perversas do AI-5 foi a suspensão do habeas corpus, dispositivo jurídico
utilizado para garantir que o acusado não tenha seu direito à liberdade
ameaçado por alguma ilegalidade, qualquer violência, coação ou abuso de poder.
“A partir do momento em que se acaba com o habeas corpus, se tirou qualquer
possibilidade de controle judicial de pessoas presas arbitrariamente. Com o
AI-5, se perdeu a possibilidade de qualquer controle dos abusos que a ditadura
cometia”, comenta o professor de Direito da Escola Paulista de Política,
Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Assim como Anivaldo, Aton Fon Filho também carrega as marcas
da ditadura em sua história. Tinha 16 anos quando os militares tomaram o poder
no Brasil e, naquele mesmo ano, se tornou membro do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). No final de 1969, foi preso e torturado por sua atuação na
Ação Libertadora Nacional (ALN), organização comandada por Carlos Marighella,
que morrera meses antes. “Foram 9 anos, 11 meses e 3 dias. Não deixo barato nem
os 3 dias”, diz Fon.
Ao ser liberado, em 1979, formou-se em Direito e se tornou
advogado de causas e movimentos sociais, tais como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ele relembra que o regime militar também
era apoiado pela classe média da época devido ao processo propagandeado como o
“milagre econômico” brasileiro.
“O AI-5 vem, fecha os espaços de resistência política,
justamente em um momento em que estão se criando condições também para que
aumente o apoio popular à ditadura. Com isso, a ditadura logrou o melhor de
dois mundos: ao mesmo tempo, tinha fechado todos os espaços políticos e
militarizados em todo o país, por um lado, e por outro, as medidas que tinham
sido adotadas antes de 1968 continuaram a ser adotadas até 1974, e acabou
ganhando apoio de massas também”, reforça o ex-preso político.
Quinalha enfatiza que a ditadura militar fez com que o
Brasil se afastasse completamente dos parâmetros colocados na Declaração
Universal de Direitos Humanos, que completou 70 anos na última segunda-feira
(10). “O AI5 materializa todas as violações de direitos humanos que a ditadura
vai praticar de maneira massiva a partir de então”.
América Latina
Tal modelo de violações de direitos imposto pelos militares
ultrapassou as fronteiras brasileiras. É o que avalia Ana Lúcia Marchiori, da
Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e advogada de presos
políticos da região do ABC Paulista. Para ela, a repressão e perseguição que
acontecia no país se multiplicou pela América Latina.
“As medidas contidas no AI-5 reforçaram uma sucessão de
golpes militares nos países do Cone Sul como Chile, Uruguai e Argentina. O
Brasil serviu como uma ponta de lança para a implementação das ditaduras
militares na América Latina e outras conspirações golpistas”, diz Marchiori. O
contexto teria fomentado a articulação da Operação Condor, uma aliança
político-militar entre vários regimes da América do Sul nas décadas de 1970 e
1980, apoiada pelos Estados Unidos.
Em relação à violação dos direitos humanos, Marchiori
destaca que as mulheres foram duramente
reprimidas pelo regime militar. “As
mulheres não só eram torturadas, mas foram instrumentos de tortura para que
companheiros pudessem delatar outros companheiros. Houve tortura, estupros -
muitas vezes estupros coletivos - e empalamento de mulheres. Foi uma tortura física
grande que se expressou e foi legitimada por esse ato institucional e por isso
ele é considerado o mais truculento, o mais grave de todos.”
A jurista, que também integra o Comitê da Sociedade Civil da
Comissão da Anistia, lamenta a censura à liberdade de expressão protagonizada
pelos militares. “Tivemos censura das produções artísticas, diversos jornais
foram proibidos de circular. Tivemos de 68 até o 78, 500 filmes, mais de 400
peças de teatro, 200 livros e incontáveis músicas que foram censuradas por
conta do AI-5”.
Exemplo de resistência
Foi a fé cristã e o engajamento político de Anivalvo Padilha
que fizeram com que ele pudesse resistir à tortura. Ele relata que chegou a
pensar em suicídio, mas a visão de solidariedade e compaixão pelo próximo lhe
deu forças para manter seu equilíbrio mental.
“Se eu achava que tinha dedicado minha vida naquela missão,
minha vida já não me pertencia mais. Eu não tinha direito de tirar essa vida.
Pensei: 'Se tiver que morrer aqui, que a ditadura assuma a responsabilidade
pela minha morte. O suicídio seria dar a ela uma desculpa para se livrar de
mim. Suicídio seria eu fazer o trabalho que a ditadura gostaria de fazer,
então, ela que faça”.
Os militares não conseguiram comprovar relações de Padilha
com organizações clandestinas, mas, após ser liberado, para não correr o risco
de ser preso novamente e de prejudicar sua família, foi obrigado a se exilar e
retornou ao país apenas em 1984. Devido ao exílio, Padilha não pode acompanhar
a primeira infância de seu filho, Alexandre Padilha, que viria a ser Ministro
da Saúde no governo Dilma.
“Mesmo com tudo isso que foi representado pelo AI-5,
acabamos vencedores. Quando olhei pro Alexandre, quando ele estava em Brasília
como ministro, participando do governo federal… Vi sua posse, com as forças
armadas (Marinha, Aeronáutica e Exército) perfiladas diante do Lula e da Dilma.
Pensei: 'Tentaram nos matar, mas estamos aqui”, conta Anivaldo, emocionado.
Em 2012, o ex-preso político foi anistiado. Na ocasião, o
presidente da Comissão da Anistia pediu perdão a Anivaldo, em nome do Estado
Brasileiro, o que foi muito significativo para o militante. Ele aponta que a
atuação da Comissão da Anistia, assim como foi a da Comissão Nacional da
Verdade, são necessárias para romper uma estrutura do silêncio que ainda existe
em relação aos crimes da ditadura.
“Aquele ato de pedir perdão, do ponto de vista subjetivo é
muito importante. Para mim foi. Eu fiquei muito emocionado naquela cerimônia.
Ali é uma comissão de Estado e não de governo. É alguém falando em nome do
Estado brasileiro”, reforça Anivaldo. “É um ato simbólico que ajuda as pessoas
a conviver com a memória daquilo que sofreu. A comissão tem realizado um
trabalho muito importante de manter a memória daquele período. É uma das coisas
mais importantes que podemos fazer: não deixar que essa memória morra ou
desapareça porque é isso que a classe dominante do Brasil gostaria de fazer, de
passar uma borracha nesse passado.”
Resquícios da ditadura
Havia 73 anos que o Brasil não escolhia pelo voto direto um
militar para ocupar a Presidência da República, até a eleição de Jair Bolsonaro
(PSL). O último foi Eurico Gaspar Dutra
(eleito em 1945). A presença de um militar no poder, acompanhado de General
Hamilton Mourão como vice, suscitou receios em relação à permanência da
democracia no país e ao cumprimento da Constituição Federal de 1988.
Até o momento, Bolsonaro nomeou sete integrantes das Forças
Armadas para ocupar cargos ministeriais, quase um terço de todas as pastas.
Aton Fon alerta que a sociedade precisa estar atenta às movimentações do novo
governo.
“O resultado da última eleição mostra que, de certa forma, a
massa proletária foi seduzida pelas propostas, pela argumentação do bloco
imperialista, do bloco fascista. Eu diria que já estamos em uma situação que
mesmo se não decorrer exatamente do mesmo modo que ocorreu em 1968 com o AI-5,
há a perspectiva de que sim, [um golpe] possa se realizar”, declara Fon.
Já Renan Quinalha avalia que não há possibilidade de um
golpe no “sentido tradicional”, como foi o de 1964, porque os militares estão
contemplados na formação do governo Bolsonaro. No entanto, para ele, sem dúvida
há a crescente militarização de um novo regime, no qual o autoritarismo se
exerce de maneira mais sútil, travestindo-se de democracia.
O ativista lamenta que a violação de direitos humanos
institucionalizada pelo AI-5 ainda perpetuada pelo Estado brasileiro. “Essa
política que a ditadura praticava de torturas, de desaparecimentos, de execução
sumária ainda hoje são praticadas contra a população jovem e negra nas
periferias das grandes cidades, contra as populações indígenas e quilombolas.
[São praticadas] no sistema carcerário brasileiro, para onde eram mandados os
presos políticos e para onde estão os presos atuais, também marcados por graves
violações de direitos humanos”, finaliza Quinalha.
Edição: Tayguara Ribeiro
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