Tive aquele sonho. De novo. Ele nunca muda. E ainda que eu
não queira contar, eu conto, porque você pede, e eu sempre falo.
Ilustração - Keops Ferraz |
Por *André Cordeiro
O começo é o mesmo: estou em minha cama, não conseguindo
dormir. O relógio da cabeceira mostra que já passa da meia-noite. Por alguma
razão, sinto medo. Medo de uma presença estranha nos cantos do meu quarto. Como
se estivesse me observando, respirando.
Isso dificulta que eu me acalme, que respire direito, que
pense. Prefiro ficar debaixo das cobertas. Não posso sair. Tento raciocinar,
digo a mim mesmo que tudo não passa da minha imaginação, que no escuro é igual
na luz, nada muda. Mas é mentira.
Nada, nada vai me fazer achar que estou sozinho. Sei que não
estou. Pelo menos não naquela noite.
O mais sensato seria permanecer ali. Mas você já ouviu esse
sonho, sabe que não é isso que acontece. O barulho de um vaso se quebrando vem
da sala num eco sibilante. Aquele som ressoa e prolonga-se até minha cabeça não
aguentar de tanta dor. Quando ele para, noto algo errado: eu não tenho um vaso.
Nenhum vaso.
Decido sair da cama. Não acendo nenhuma luz, guio-me pela
parede, conheço aquele apartamento muito bem. Abro a porta e sigo pelo
corredor. Os móveis estão todos em seu devido lugar. Aquela estranha presença
que havia sentido volta, porém com mais intensidade. Algo parecido com uma
respiração rouca vem da sala. Ela é ritmada.
Avanço.
Ela aumenta.
Acelera.
Aumenta a cada passo que dou, a cada passo que estou mais
próximo da sala. Volto a tremer. Minhas pupilas dilatam. Não quero olhar. Não
posso. Tem alguma coisa ali, algo me observa.
Tem alguém ali.
Não consigo me conter. Preciso ver.
E vejo.
Ao fundo, numa poltrona, uma figura repousa. Está com as
pernas cruzadas. Parece ser um homem de terno. É um homem. Sua pele é pálida.
Vejo que ele sorri, mas só isso. Porque do nariz para cima só há sombra, como
se tivesse apenas metade do seu rosto. Como se os dentes flutuassem no escuro.
Fico sem reação. Quando tento voltar ao quarto, ele solta
uma risada. Ela me prende ao chão. O homem gesticula com os dedos, indicando
para que eu sente próximo a ele. Não consigo fugir. Obedeço.
Tento não entrar em pânico. E por mais que eu deseje que
aquilo seja mero delírio, o homem de terno parece mais real a cada passo. E
aquele sorriso não fecha.
Quando sento, fico de frente a ele. O sorriso continua.
Encaramos um ao outro. Não consigo me mover. O seu sorriso
abre-se ainda mais.
Até que ele me surpreende. Ele me faz uma pergunta, “o que
você sonhou na noite passada?”. Eu respondo que é o mesmo sonho, que estou em
minha cama, que ouço um barulho, que vou até a sala, que encontro um homem de
terno e que ele me pergunta o que eu havia sonhado na noite passada.
“Como você sabe que sempre é um sonho?”. Porque o homem de
terno sempre me pergunta o que eu sonhei na noite passada, que depois me faz
essa mesma pergunta, que depois pergunta como eu gostaria de morrer.
Eu respondo que não penso na morte, que não me importo. Ele
diz que é mentira. “Mentiroso, mentiroso, mentiroso”.
Ele se aproxima de mim. Me abraça. Suas mãos cravam em
minhas costas. Ele volta a rir. E eu rio também. Nossas risadas ressoam em
uníssono. Meu sorriso se torna o dele. Minha pele fica pálida. Meu corpo
entorpecido.
Sento em sua poltrona.
Encaro a negritude da sala, sorrindo.
E espero por mim mesmo aparecer, para que eu possa me
perguntar o que eu havia sonhado na noite passada.
*ANDRÉ CORDEIRO
Nasceu em São Paulo-SP (1993). É formado em Direito pela
PUC-SP, trabalha como repórter e escreve nas horas vagas. Já publicou um conto
na Revista Ponto da Editora SESI-SP e escreve poesias e frases no Instagram
@andremmcordeiro
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