Da sua casinha de vão único, ele vê um mundo fatiado através
do basculante. É um homem sem horizontes. Logo ali começa o mundo do vizinho,
com uma parede de tijolo vermelho enclausurando seu olhar resignado. Mais que
dono de uma casa, sempre quis ser dono de um quintal com uma mangueira, onde
ele moleque se pendurava para chupar a fruta e brincar a vida. É um homem de
outro tempo, do tempo dos quintais.
Por Joana Rozowykwiat*
Ilustração: Matheus Asfora
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Percorre as ruelas do progresso inconcluso, desvia dos
fedores pelo caminho, algumas nesgas de céu ardem na sua cabeça. Nenhuma árvore
lhe protege. Nenhuma beleza lhe enche os olhos. Entra no ônibus e, do corredor
espremido, só avista coisas e gentes pela metade. Vê meia menina, meio velho,
meio prédio, outro meio prédio e outro e outro. Um cachorro inteiro. Meio tronco
de ipê, ele imagina, sem conseguir mirar a copa. Ouve buzina, freio,
bate-estaca, o barulho da catraca e a voz desmedida que sua companheira de
viagem lança ao telefone.
Quando chega ao seu destino, já está cansado. Presta atenção
às florzinhas coloridas que brotam do jardim de um prédio de luxo e sorri. No
trabalho, troca de roupa e entra no elevador. Acompanha com os olhos os andares
de um edifício que se revela, parece infinito. Consegue ver, lá dentro, em
cômodos empilhados, uma senhora sentada no sofá, um homem à frente do
computador, muitas cortinas fechadas que enclausuram outros olhares resignados.
Fios e antenas enfeiam o teto das coisas.
Quando chega ao último andar da construção, ele sente certo
orgulho. Vê o cinza a seus pés. Vê inteiro. Vê a cidade como ela é, tão
distante. Tão sufocada. Um amontoado de concreto, motores e passos apressados.
Mas ele nem liga. No topo, ele tem o céu. Tem o vento. Fecha os olhos e inventa
ali a sua mangueira carregada de manga espada. Sente até o cheiro.
Volta por um instante a ser um homem com horizonte. E vem
uma alegria temporária. Porque não é seu aquele horizonte. Porque construiu com
cimento, tijolo e suor a paisagem de outra gente. Mas ele nem pensa muito
nisso. Quer aproveitar enquanto pode aquela imensidão. Quer estar por cima por
alguns momentos. Curte um pouco a vida nas alturas, antes de voltar para sua
realidade operária. Antes que se ouça mais um bate-estaca na vizinhança. Antes
de descer para o seu mundo fatiado. É um homem como muitos, em uma cidade para
poucos.
*Joana Rozowykwiat é jornalista, especialista em jornalismo
político e econômico e integrou a equipe do Portal Vermelho. É autora do livro
Subversivos – 50 anos após o golpe e tem contos publicados na coletânea Recife
conta o Natal I (2007) e no Suplemento Cultural Pernambuco. Integra o
Vacatussa.
Fonte: Vacatussa
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