Por 129 a 125, Câmara aprova legalização da interrupção da
gravidez não desejada, que será gratuita e segura; projeto vai agora ao Senado.
Com Rocini Fernández
Enquanto no Brasil a direita quer proibir o aborto até mesmo
em caso de estupro, na Argentina acaba de passar na Câmara um projeto que
permite a legalização da interrupção da gravidez não desejada, que será
gratuita e segura, na rede pública de saúde. A vitória foi apertada, por 129
votos a favor e 125 contra. Agora, o Senado irá definir se vira lei. Isso se
tornou possível porque o feminismo é o movimento mais revolucionário da última
década no país. Milhões de mulheres foram às ruas com seus lenços verdes, o
símbolo que as caracteriza, apoiar a legalização.
Houve surpresas, incluindo o voto favorável dos deputados
Fernando Iglesias e Daniel Lipovetzky, defensores intransigentes do PRO
(Proposta Republicana), de direita, que foram até aplaudidos pelo kirchnerismo,
uma situação que raramente voltará a acontecer. Do outro lado, Jose Luis Gioja,
da Frente para a Vitória e ex-presidente do PJ (Partido Justicialista), votou contra
por ser “peronista” e por ser “uma lei contraditória”. Má jogada política.
Uma das líderes do PRO, Elisa Carrió, que votou contra,
declarou à imprensa: “Sei que as mulheres morrem, mas eu votarei não”. Para a
vice-presidente da nação, Gabriela Michetti, os países ricos vão mais uma vez
criminalizar o aborto porque “nascem poucas crianças”. Não é de surpreender que
a bandeira pedindo esta penalidade congregue o catolicismo mais conservador, o
mesmo que defendeu exterminar os índios considerados “hereges”.
O debate foi feroz, 24 horas. Algumas barbaridades foram
ditas, como o deputado do PRO Alfredo Olmedo, que disparou: “Se você, como
mulher, ‘lembrar’, oito meses, depois que foi estuprada, este projeto vai lhe
permitir matar o menino”. Depois, declarou à imprensa que, se a lei for
aprovada, ele proporia “fazer um cemitério para as vítimas de abortos”.
Mas essa afirmação não foi a mais aberrante. Estela Regidor,
do UCR, disse: “Certamente muitos de
vocês têm animais de estimação. O que acontece quando uma cadela engravida? Não
a levamos ao veterinário para fazer um aborto.” Mas o mais perverso foi o chefe
do bloco PRO, Nicolás Massot, cuja família tinha laços com a ditadura, no
bate-boca com o deputado Juan Cabandié, filho de desaparecidos: “Nunca em uma
democracia fomos tão longe, Juan”. A deputada Mayra Mendoza rebateu: “Mas vocês
foram incentivados durante a ditadura”. E ele respondeu:
“Nem naquela época, Mayra, nem naquela época fomos tão
longe”, respondeu Massot, que escolheu falar sobre a ditadura na primeira
pessoa do plural: “nós”. Vileza é pouco.
Antes da votação, Diego Maradona enviou uma mensagem aos
deputados. Em um móvel com o jornalista Victor Hugo Morales, da Rússia, o
treinador disse:” Temos de proteger a mulher. A mulher não pode que arriscar
sua vida toda vez que precisa ir a um açougueiro tirar um bebê. Isso é
criminoso. O que eu gostaria de pedir aos votantes é que deem uma chance a essa
mulher de escolher democraticamente “. Recorde-se que Maradona tem uma tatuagem
de “Che” Guevara, e coincidentemente hoje são os 90 anos do nascimento de Che.
Yo no creo en las brujas, pero…
Em uma economia devastada, com um povo extremamente
empobrecido, hoje os argentinos podem cantar a vitória, mesmo que por um
momento. As mulheres transformaram o sistema. O projeto promovido por Macri,
que não só não participou em nenhum momento do debate como declarou
publicamente que não estava a favor, hoje deve ser uma dor de cabeça para o
presidente. Poucos pensaram que ele ia passar, e que esta era uma cortina de
fumaça para desviar o foco sobre o problema fundamental que nós, argentinos
temos, que é não poder chegar a pagar as contas no fim do mês. Estávamos
errados. Foi aprovado.
Estima-se que cerca de 500 mil abortos sejam realizados por
ano na Argentina. A ideia da proposta de legalizar o aborto é melhorar este
problema em termos de saúde. Não é uma questão ética ou moral: não existe
mulher que goste de realizar abortos. “A comunidade científica internacional
diz que, para cada aborto que provoca internação em países onde o aborto é
criminalizado, mais de dez que foram feitas sem complicações. Na Argentina,
temos cerca de 60 mil internações em hospitais públicos por abortos inseguros.
Basta fazer as contas”, diz o médico Mario Sebastiani, um obstetra com 40 anos
de profissão. “Na minha primeira prática em Larcade Hospital, San Miguel, eu vi
mulheres morrerem de abortos inseguros. Percorri o país e posso garantir que,
ainda hoje, embora tenha se difundido o uso do misoprostol para o aborto, ainda
se usa , em desespero, agulha de tricô, o talo da salsa ou pílula de permanganato,
que causa uma terrível úlcera vaginal.”
De acordo com o Ministério da Saúde, desde a volta da
democracia na Argentina, 3030 mulheres morreram devido a abortos inseguros e,
em 2013, cerca de 49 mil foram internadas em hospitais públicos por
complicações relacionadas à interrupção da gravidez. Mais precisamente, cerca
de 135 mulheres foram hospitalizadas por dia sobre este assunto. Destas, duas
em cada 10 tinham 19 anos ou menos e três em cada 10 tinham entre 20 e 24 anos
de idade. Em 2016 –o último dado disponível–, 245 mulheres grávidas morreram;
em 43 desses casos, inclui diretamente o “aborto” como causa da morte
Veremos se, quando a lei for aprovada, o presidente será
incentivado a vetá-la como fez com o veto à lei que eliminava as taxas sobre os
serviços básicos. A dúvida é se Macri terá coragem de enfrentar essas
guerreiras de rua com seus “pañuelos” verdes. Se ousar fazê-lo, prepare-se para
que virem o congresso de cabeça para baixo. Com essas mulheres não se brinca.
Hoje ganhou o feminismo, ganhou a saúde, ganhou a igualdade, ganhou todo o país,
mas também ganhou a América do Sul, enquanto nos aproximamos da lei já em vigor
no Uruguai, e esperamos que se espalhe para toda a região. Obrigado, senhoras.
Orgulho nacional.
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