O povo veste vermelho, estampa a foto do Lula na camisa e
vai assistir jogo da Seleção.
No - Jornalistas Livres
Tolos são os que rejeitam a Copa do Mundo, reivindicando
para si alguma austeridade, como se negar um evento que mobiliza milhões de
pessoas pudesse servir como signo de distinção.
Como a tolice é democrática, os tolos estão por todos os
lados, à esquerda e à direita, passando pelo centro.
Num país como o Brasil, onde o futebol é a coisa mais
importante entre as coisas mais importantes, a Copa do Mundo representa uma
possibilidade única de encontro. É isso!
No Brasil, Copa do Mundo é encontro.
Escrevo, hoje, a crônica de um encontro, crônica de Copa.
Aconteceu na Bahia, em Salvador, num bar do Pelourinho. Era
segunda-feira, 2 de julho, dia de jogo da Seleção.
Tenho o hábito de assistir jogos de futebol em mesa de bar,
sejam jogos do Flamengo ou da Seleção. Confesso, sem nenhum pudor, que gosto
mais do Flamengo do que da Seleção. Gosto da Seleção também.
Gosto mesmo é de bar que tem cerveja gelada e samba. Se é
quase certeza que todo bar tem cerveja gelada, pois do contrário não seria bar
coisa nenhuma, o mesmo não pode ser dito para o samba.
Não é todo bar que tem samba. Acho criminoso o bar que não
tem samba.
Fato é que o bar que escolhi pra assistir o jogo tinha
cerveja gelada e samba. O samba começou forte e parou um pouco antes do apito
inicial, quando os jogadores se perfilavam para cantarem seus respectivos hinos
nacionais. Essa é a parte do jogo que menos gosto. Acho cafona, lembra quartel,
escola. Passa rápido. Dá pra aguentar.
O bar tava cheio de gente vestindo o já tradicional verde e
amarelo. Mas tinham muitos de vermelho também. Vermelho no jogo da seleção? Pra
explicar, preciso falar um pouco sobre a Bahia.
Começo pelo 2 de Julho, feriado importante no calendário
baiano.
É a “independência da Bahia”, que dizem os baianos ter
acontecido antes da independência do Brasil. Tipo, primeiro ficou livre a Bahia
e depois o restante da nação, que nem nação era ainda. Eu, que de bobo não
tenho nada, não vou teimar com os baianos.
A Bahia ficou independente antes do Brasil e ponto final!
Feriado de 2 de julho é dia de festa religiosa. As imagens
de um casal de caboclos são carregadas pela cidade.
As pessoas tocam nos caboclos, choram no pé da cabocla.
Já virou até gracejo aqui na Bahia. Quando o sujeito, ou a
sujeita, reclamam muito da vida, o povo diz “Vai lá chorar no pé da cabocla”.
Seria uma versão baiana pro “Não me encha a paciência com teus problemas”.
Eu não fazia a menor ideia por que um casal de caboclos é
carregado num desfile cívico, de comemoração da independência. Mas como sou bom
ouvinte, aprendi rápido: os tais caboclos representam os de baixo, os pobres
que lutaram pela independência.
No cortejo dos caboclos tem de tudo: tem índio, milicos do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica, crente segurando a bíblia e querendo
exorcizar os índios, manifestação política e por aí vai.
Por isso, no bar, o da cerveja gelada e do samba, tinha um
monte de gente vestindo vermelho, com foto do Lula desenhada na camisa. A
galera participou do cortejo dos caboclos e depois foi pro bar, assistir jogo e
beber cerveja. Justo, coerente.
É que ser lulista na Bahia não é vergonha nenhuma. No Rio de
Janeiro é diferente.
No Rio de Janeiro, Lula é rejeitado tanto por uma direita
desavergonhada e decadente como por uma esquerda que se convenceu de que o
Brasil se resume ao território compreendido entre o Leblon e a Tijuca.
Aqui na Bahia, não!
O povo veste vermelho, estampa a foto do Lula na camisa e
vai assistir jogo da Seleção.
“Aqui tem um monte de gente do PT, né?”, disse pra mim,
quase num sussurro, uma mulher que parecia beirar uns 60 anos. O tom foi meio
cauteloso, como quem pisa leve em terreno desconhecido. Ela tava querendo saber
qual era a minha, o que eu achava daquela vermelhada toda.
Respondi de bate-pronto, como se estivesse chutando uma
bola: “Graças a Deus!”.
A mulher sorriu com ar de cumplicidade e respondeu mais ou
menos assim:
“Vou te contar uma coisa: eu também sou PT. Votei no Lula,
votei na Dilma e vou votar no Lula de novo. Ele roubou, mas melhorou nossa
vida. Antes do Lula davam leite pra gente, uma farinha pra misturar na comida
dos meninos. Agora, com o Bolsa Família, a gente pode comprar um gás, um
danone.”
Tem tanto sentido nessas palavras, tantas possibilidades de
interpretação do Brasil, que pra não me perder nas ideias, organizo a reflexão
em partes:
1º) A histeria anticorrupção que até aqui foi o fundamento
semântico da crise parece não ecoar tanto na base da sociedade. O povo pobre,
que vive de salário mínimo, está preocupado com a própria sobrevivência e
disposto a votar em quem se mostrar mais favorável à garantia dessa
sobrevivência. Nesse aspecto, Lula é imbatível. O povo tem inteligência
prática, tem boa memória.
Na hora, até tentei dizer para a companheira que Lula não
tinha roubado, que não existiam provas. Ela deu de ombros e continuou dizendo
que não queria saber, que votaria nele assim mesmo. A moral é mais frouxa
quando o estômago está vazio. Justo, coerente.
2°) O Bolsa Família foi a maior revolução social que este
país já viu. Não que o Bolsa Família tenha inaugurado a assistência social aos
mais pobres. Não mesmo!
Assistência social para os pobres existe desde que existe a
pobreza.
A Igreja, o Coronel, o Estado, sempre tem alguém dando uma
“ajudinha” aos mais pobres, seja por caridade cristã, penitência ou cálculo
político.
Com o Bolsa Família é diferente e a minha amiga entendeu
isso perfeitamente.
O Bolsa Família não é a farinha nutritiva, muito usada para
combater a mortalidade infantil. O Bolsa Família é o dinheiro na mão do pobre,
auxílio que chega pelo banco, através de política pública. Com o Bolsa Família,
o pobre está empoderado, nem que seja um pouquinho, para escolher, para
“comprar um gás, um danone”.
Com o Bolsa Família, pobre não depende da generosidade de
pessoa física.
Por isso que parte das elites brasileiras, em sua maioria
pessoas cristãs, caridosas, rejeita tanto o Bolsa Família. O Bolsa Família
dispensa a caridade e gente tão ruim precisa, desesperadamente, do exercício da
caridade para ingressar no paraíso cristão. Que queimem no inferno!
3°) Em nenhum momento minha amiga cogitou a possibilidade de
não votar em Lula. O tempo inteiro, ela dizia: “Se Deus quiser, Lula vai voltar
e ajudar a gente de novo”, numa espécie de sebastianismo preventivo, que se dá
antes mesmo do desaparecimento total do salvador.
É claro que eu, pragmático por natureza, insisti, dizendo
“talvez não dê pra votar nele, precisamos ficar atentos em quem ele vai
indicar”. Outra vez, ela não deu muita bola, e continuou o mantra “Deus vai
ajudar o Lula e ele vai voltar”.
É bonito, me emocionou. Com alguma ajuda das cervejas que já
se acumulavam na minha corrente sanguínea, cheguei a marejar os olhos. Quando
bebo fico mais sensível.
Confesso que também fiquei preocupado. Todos nós que
acompanhamos a crônica política nacional, sabemos que a homologação da
candidatura de Lula pelo TSE é quase impossível. A resistência da minha amiga
em discutir uma alternativa, em pensar em outro nome, ainda que seja um nome
chancelado por Lula, me deixou muito apreensivo.
A preocupação passou num instante, foi-se embora no mesmo pé
em que tinha vindo. Eu tava ocupado demais pra pensar nos problemas.
Era início de tarde e os caboclos estavam animados, em
festa.
Na Rússia, os caboclos chutavam bola com perícia de artista,
dando uma aula de futebol. Nas ruas do Pelourinho, o casal de Caboclos passava,
semeando a esperança no coração de gente tão sofrida. E no bar, ao meu lado,
bem pertinho, a cabocla, com sua inteligência política prática, me ensinava a
acreditar no improvável.
*Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na
UFBA, com ilustração de Cau Gomez.
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