Salvo engano, há tempos quase ninguém mais lê o Caramuru –
poema épico em dez cantos, de Santa Rita Durão, publicado em 1781. A premissa é
duplamente infeliz: em primeiro lugar, porque sugere que cada vez se lê menos e
pior, na universidade (e fora dela, haja vista o império do senso comum); o
segundo motivo é que os internautas deixam de conhecer uma das personagens mais
impactantes do que se convencionou chamar de poesia “árcade”, praticada no
Estado do Brasil, possessão ultramarina do reino português, durante o Ancién
Regime.
Refiro-me, em particular, a Jararaca – índio retratado como
malvado, violento e pérfido pelo talentoso frei/poeta luso-brasileiro. Por que
recorro a um texto tão “ultrapassado”, ademais setecentista, coalhado de
artifícios retórico-poético-teológicos? Porque, no dia de hoje (anotem esta
data), um vetusto órgão veiculou editorial em que um historiador best-seller
sugeriu extirpar o “lulo-petismo” na Universidade a que deve sua formação e
onde ele mesmo leciona.
Um leitor que ainda acredite restar algo da res publica dos
Estados Unidos do Brasil, poderia argumentar que se trata de jornal “sério”,
com “credibilidade”, “isenção” etc. Afinal, é lido/assinado por uma quantidade
considerável de brasileiros (que sonham com Miami ou Paris) dispostos a nivelar
coração e mente ao nível rasteiro de incertas reportagens ou “artigos” de
opinião.
Mas, como defender que, no mesmo editorial (gênero
jornalístico, sujeito a regras do decoro e da etiqueta, vale lembrar), o
distinto historiador aluda ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva como
Jararaca? Seria uma referência ao vilão hiperbólico do poeta Durão? Parece não
ser o caso.
Parêntese: a essa altura, porventura até mesmo o leitor
mitomaníaco concorde que o referido jornal terá ido longe demais. É que, desde
que passou a engrossar o discurso conservador de incerta (mas poderosa) elite
socioeconômica brasileira – pretensamente culta, incorruptível, suprema, santa
e civilizada – tornou-se mais difícil aderir ao que a maioria de seus
articulistas dizem.
Convenhamos: uma coisa é determinado veículo adotar (ou
avalizar) a postura refratária a determinado partido e/ou “ideologia” política
(o que o transforma em plataforma política com sinal invertido, pois elege
outra corrente ideológica e partido como “seus”); coisa bem diversa é atribuir
a Lula a denominação comum a uma espécie rastejante da classe dos répteis.
Haverá cabimento em nomear como Jararaca um homem preso, sem
provas materiais que justifiquem a sua reclusão arbitrária, orquestrada por uma
trinca constituída pela toga, o conglomerado midiático e parte de nossa elite
financeira?
Mas não desanime. Ainda. O melhor do pior está por vir.
Em determinado momento, o celebrado historiador (a quem o
veículo recorre como enunciador do argumento de autoridade) indaga-se como a
“jararaca (ainda) não foi morta”? Poderíamos responder a essa pergunta de
várias formas.
Escolho uma.
Lula não foi aniquilado porque, durante o seu governo, a
vida de dezenas de milhões de brasileiros mudou, deveras, para melhor. Isso
porque o projeto de seu partido, com todas as ressalvas que possamos fazer, foi
o mais inclusivo de nossa história, mediada por golpes de Estado.
Convido o especialista, tão afinado com a ideologia do
veículo, a fazer contas honestas e mostrar como decresceram os investimentos em
Educação, no pobre-rico Estado de São Paulo, à proporção que a legenda
entreguista, que nada tem de social-democrata se manteve no poder.
Por obséquio, o internauta, que é discreto, apartidário e
atento, releia o editorial a que me refiro e repare: ele é um acinte aos
(e)leitores – quer eles votem, ou não, em Haddad/Manuela etc.
Caso tenha restado alguma ética na redação do jornal, que o
veículo admita de pronto o seu, digamos, “equívoco” (reparem como é possível
soar de modo educado). Ou será pedir demais que um jornal “de grande porte” não
proceda de modo tão rasteiro, para não dizer... serpenteante?
Sugerir a extinção de uma Jararaca, ou pior, a morte de uma
pessoa (cujos direitos estão em suspenso graças aos caprichos de um punhado de
sujeitos, com o aval da imprensa dita “tradicional”) será desejo latente do
historiador que colabora do editorial? Ou incitação manifesta ao crime?
Via Jornal GGN
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