E no entanto, sem que me dê
conta, ainda me apetece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava
de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura,
abre-latas e chave de parafusos.
Ainda queria que o meu pai me
comprasse na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia de Yvonne de
Carlo em fato de banho do outro lado.
Ainda tenho vontade de escrever o
meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do
passeio sem pisar os intervalos das pedras.
Ainda me apetecia que o meu avô
me viesse fazer uma festa à cama. Ainda gosto de resolver os hieróglifos
comprimidos dos Almanaques Bertrand do sótão organizados pela Sra.
D. Maria Fernandes Costa e de escrever nas
soluções quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já
Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa.
Pensando bem (e digo isto ao
espelho) não sou um senhor de idade que conservou o coração de menino.
Sou um menino cujo envelope se
gastou.
António Lobo Antunes — Livro de Crónicas.
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