No DCM
Para o professor-doutor Antonio Corrêa de Lacerda, embora
ainda seja difícil prever a extensão e os efeitos da pandemia na economia e na
crise global, é possível afirmar que pelo menos uma das ações adotadas até
agora pelo governo brasileiro é equivocada: editar uma medida provisória que
permite redução salarial, caso da MP 936, questionada, inclusive, no Supremo
Tribunal Federal.
É um “auto-engano”, define o também diretor da Faculdade de
Economia, Administração, Contabilidade e Ciências Atuariais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (FEA/PUC-SP) e presidente do Conselho
Federal de Economia. “Sem salário, não há consumo. Sem consumo, não há produção
e sem produção não há emprego.” A medida pode trazer um alívio imediato, mas
vai aprofundar a crise, avalia.
Autor do livro O Mito da Austeridade (Editora
Contracorrente), Lacerda critica o recorrente pensamento ortodoxo, do ajuste
fiscal a qualquer preço e de menor presença do Estado na economia. “No Brasil,
são aplicadas políticas que poucos ainda defendem mundialmente.” A pandemia do
coronavírus escancara esse erro.
Tamanho da crise:
Com a pandemia, há alguma previsão possível de se fazer a
esta altura, considerando que a economia já dava sinais de crise?
Na verdade, a profundidade e extensão da crise brasileira
vão depender do mesmo processo internacional, do tamanho da crise sanitária e
da eficácia e dimensão das medidas do governo para combatê-las.
Especificamente para o Brasil, qual é o cenário? O que
esperar do mercado de trabalho, por exemplo?
O quadro de recessão (queda do PIB) está dado. Não se sabe
ainda de quanto, mas podemos prognosticar algo entre -3% e -6%, a depender dos
aspectos levantados na questão anterior. O desemprego aumentará. Menos consumo,
menor produção, menos emprego, em um ciclo vicioso. Daí a importância de
medidas para compensar a recessão, pelo menos em parte.
As medidas apresentadas até agora pelo governo são
suficientes?
Embora na direção correta, ainda são muito tímidas, tardias
e insuficientes relativamente à crise que se prenuncia. É preciso mais volume
de recursos e maior efetividade a agilidade na sua execução.
Qual sua visão sobre a Medida Provisória 936, que permite
redução de salários? Não deveria haver um esforço para preservar a renda neste
momento, além da sobrevivência das empresas?
Reduzir salário é uma falsa solução. Um autoengano. Pode
amenizar a situação da empresa, no curto prazo. Mas sem salário não há consumo.
Sem consumo não há produção e sem produção não há emprego. Ou seja, do ponto de
vista macroeconômico reduzir salário não resolve, pelo contrário, aprofunda a
crise. Uma alternativa seria cobrir a diferença com recursos do Estado, o que
de certa forma está proposto, mas de forma limitada.
O “mercado” na Berlinda:
“O que restou da indústria brasileira”, como o senhor diz, é
dependente de insumos da China. O país está pagando pela falta de política
industrial?
A ausência de um projeto de nação que contemple uma
abordagem ampla de desenvolvimento está ausente há um bom tempo. Em momento de
crise, como agora, na pandemia, isso fica mais evidente na economia. Destruímos
nossa capacidade de industrialização e isso faz muita falta. Dependemos de
importação não só de aparelhos sofisticados, mas de material médico básico,
como luvas, máscaras e respiradores, por exemplo.
Muito se fala, agora – em meio à pandemia –, na presença do
Estado para recuperar a economia. Isso põe na berlinda a visão ortodoxa do
ajuste fiscal a qualquer preço, ou é apenas uma “concessão” momentânea?
A história já mostrou que a visão ortodoxa liberal, a
corrente principal do pensamento econômico sempre ressurge, apesar das
evidências em contrário da sua eficácia. No Brasil, então, são aplicadas
politicas que poucos ainda defendem mundialmente. A reversão atual é
circunstancial, pois a visão predominante entre os agentes financeiros e sua
influência no debate público é a contrária.
E quanto ao papel anticíclico dos bancos públicos? Os
recentes ataques não comprometeram a capacidade do setor de fomentar investimentos?
Totalmente. Perdeu-se um tempo precioso em busca de uma
suposta “caixa-preta” nos empréstimos do BNDES, que já foi oficialmente
descartada, inclusive pelos seus dirigentes atuais. Mas, no tempo das fake news
e da pós-verdade, isso sempre retorna, empobrecendo o debate do papel crucial
dos bancos públicos no Brasil.
Dólar e outras moedas:
Apesar das “brechas” abertas agora, emergencialmente, a
chamada emenda do teto de gastos atrapalha o combate à crise e mesmo uma
possível retomada, mais à frente?
A Emenda Constitucional 95, cuja aprovação em 2016 foi um
equívoco, precisa ser revertida. É um absurdo colocar todos os gastos públicos
na mesma cesta, inclusive investimentos em infraestrutura e os sociais. Ainda
mais, congelá-los por 20 anos!
Até onde vai a alta do dólar, ou, no nosso caso, a
desvalorização do real? Que consequências isso traz para nossa balança
comercial?
Ninguém sabe. Na crise o dólar se valoriza frente às demais
moedas e o real vai junto. Enquanto durar a crise, haverá volatilidade. As
consequências são: encarecimento dos importados e, em tese, um incentivo às
exportações. Mas isso não é automático, depende de aproveitar as importações
mais caras para reconverter a indústria. E as exportações dependem de
compradores. Como o mercado internacional está mais retraído e mais
competitivo, isso vai depender também das nossas estratégias comerciais.
Por que o sr. considera equivocada a comparação entre
orçamento público e orçamento doméstico, tão presente na mídia brasileira?
Aqui não se trata de opinião, mas constatação. O orçamento
das famílias e o das empresas têm que se adaptar à receita, especialmente na
crise. Mas o Estado detém o monopólio de emissão de títulos da dívida e de
moeda, além de obrigações que lhe são atribuídas pela Constituição Federal.
Portanto, a comparação, embora usual e que serve de justificativa para a
“austeridade”, não é cabível.
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