Por Roberto Arrais*
Viajando pelo sertão do Pajeú,
onde tenho realizado alguns trabalhos nas áreas ambiental e cultural, tive
alguns encontros e algumas experiências extraordinárias. Uma delas foi conhecer
a Fazenda Colônia, um lugar de caatinga relativamente preservada, cercada por
belas paisagens de serras e recheada de páginas importantes da nossa história.
Nela estão fincadas algumas das raízes do cangaço, pois foi na Fazenda Colônia,
no município de Carnaíba, que nasceu Antônio Silvino, no dia 02 de fevereiro de
1875.
Batizado Manoel Baptista de Moraes, aquele que viria a ser um dos mais temidos cangaceiros a atuar em Pernambuco entre o final do século 19 e as duas primeiras décadas do século 20, ele entrou para o cangaço aos 22 anos de idade, em 1897, para vingar o assassinato do seu pai, Pedro Baptista Rufino, e adotou como ‘nome de guerra’ Antônio Silvino, em homenagem a um dos seus tios também cangaceiro.
Enquanto ‘Rifle de Ouro’ – como também era conhecido Antônio Silvino – já lutava a seu modo contra o que considerava injustiças, nascia no Sítio Mocós, em Panelas, no agreste pernambucano, no dia 13 de março de 1900, Gregório Bezerra, importante líder revolucionário.Tive o privilégio de conviver com Gregório como companheiro de lutas e de aprendizado na defesa da causa socialista. Um homem extraordinário, um herói do povo trabalhador brasileiro que nos encantava com a sua história e o seu exemplo de abnegação e entrega à luta dos oprimidos e explorados de nossa terra e do mundo.
No seu livro Memórias, escrito durante o seu exílio em Moscou, Gregório Bezerra faz relatos ricos de humanidade e de resistência, alguns deles vividos nos porões das prisões que ele amargou durante 23 anos, em temporadas diferentes, dependendo dos golpes de Estado e da repressão que se instalava para perseguir os comunistas, socialistas e democratas, seja na década de 20, no Estado Novo, nos anos 30/40, seja no golpe civil-militar de 1964.No ano de 1917, rico em efervescentes movimentos de lutas operárias e camponesas na Rússia, com a Insurreição popular que destituiu o Czar e, no mesmo ano, novas insurreições e combates, se consolidou a primeira Revolução Socialista liderada pelos Bolcheviques, sendo que nesse mesmo período, no Brasil, ocorria a primeira greve geral dos trabalhadores urbanos na luta pela jornada de oito horas de trabalho, descanso semanal e outras reivindicações. Muito da inspiração das lutas vinham da Revolução Russa que abalou os alicerces do mundo capitalista.
Nesta luta pelas oito horas de trabalho estava o ajudante de pedreiro Gregório Bezerra, que após enfrentar as forças policiais foi preso e encaminhado para a Casa de Detenção no Recife, hoje Casa da Cultura. Já o líder do cangaço, Antônio Silvino, foi preso em 1914.
Os dois, o comunista e o cangaceiro, tinham origem camponesa. Iniciaram-se no trabalho do roçado desde os primeiros anos de vida. Era a prática dos pais agricultores, ensinar a arte de cuidar da plantação pela pedagogia da vida, da prática, do aprender trabalhando. O seu lápis era o cabo da enxada. Era a cultura ditada pelas elites que desestimulavam os filhos de agricultores de estudarem, tal qual durante o sistema de escravidão, pois os filhos dos escravos não tinham acesso à escola; se fosse homem, ia pra enxada logo cedo e se fosse mulher, ia para as atividades domésticas. Assim continuou até quase todo o século 20.
Ambos eram valentes e revoltados,
cada um do seu jeito. Enquanto Gregório Bezerra estava indignado com as
difíceis condições de trabalho – a jornada era de 12, 14 horas de trabalho,
pois quem ditava as leis eram os patrões – Antônio Silvino se rebelou contra o
assassinato de seu pai a mando de um dos principais ‘coronéis’ da região,
representante do poder político e financeiro da época.
O pai de Antônio Silvino foi assassinado em 1897, de forma covarde e brutal, na feira de Afogados da Ingazeira, por conta de algumas divergências com proprietário vizinho da Fazenda Colônia, numa disputa por uma área de água para servir aos animais. Antônio Silvino tinha apenas 22 anos, se revoltou e junto com os irmãos decidiram vingar a morte do pai. Daí nasceu o cangaceiro também conhecido como ‘Rifle de Ouro’ e ‘Robin Hood’, pois tirava dos ricos e distribuía com os pobres.
Transformou-se numa legenda por
seu espírito de liderança e de valentia, mas também em razão da sua gentileza
com as mulheres, crianças, as pessoas idosas, entre outros. Embora tenha sido
responsabilizado por muitos crimes comprovados por testemunhos, muitos outros
foram computados para ele e o seu grupo sem que ele ou seus familiares os
tivessem cometido. Disso se aproveitavam as volantes – força policial – e os
coronéis, que assassinavam seus adversários e imputavam os crimes a Antônio
Silvino e seus seguidores.
O cangaço cresceu no Nordeste,
pois era utilizado pelos poderosos nas suas brigas e disputas por terras e
poder político. Desses conflitos por terras e poder nasciam as revoltas, muitas
delas de natureza pacífica, como Canudos, Caldeirão, Pau de Colher e outras,
porém, eram esmagadas pelo poder político local e nacional, que viam nesses
movimentos exemplos de “rebeldia” e “autonomia” política contra o sistema
vigente. Assim prosperaram Antônio Silvino, Lampião, Corisco, Jesuíno Brilhante
e tantos outros líderes do cangaço. Era a lei de quem mais tinha poder de fogo
e de dinheiro. Isso num campo fértil de miséria e fome que assolava as regiões
do semiárido do Nordeste, especialmente nas épocas das secas e de estiagens.
Na sua primeira prisão, Gregório tinha 17 anos e encontrou Antônio Silvino com 42 anos, já maduro e completamente fora da cultura da violência, mas muito respeitado e temido pela sua história de vida.
Antônio Silvino aprendeu a ler e
escrever na prisão, onde havia uma escola de alfabetização e de série primária,
ou seja, aprendeu a ler com quase 40 anos de idade. Enquanto Gregório só veio
aprender a ler quando saiu dessa sua primeira prisão, que durou quatro anos,
oito meses e vinte cinco dias, sob a acusação de “perturbador da ordem
pública”. O que nos mostra que o judiciário, em sua maior parte, desde sempre,
tinha compromisso com os poderosos e com o capital, e não com a primazia da
justiça social e “isenção” diante dos conflitos de classe. Porém, como sempre,
havia as exceções, e o juiz que julgou novamente sua prisão, após esse tempo,
disse no seu parecer, que “devia prender quem o prendeu”.
Gregório Bezerra foi protegido nessa prisão e teve em Antônio Silvino um dos seus principais amigos e parceiros de jornada prisional. Sua admiração foi colocada no seu livro de memória quando ele se referiu da seguinte forma ao ex-cangaceiro: “(…) Já tinha feito amizade com grande parte dos presos, entre os quais se destacava a figura legendária do cangaceiro Antônio Silvino, por quem tinha muita admiração desde a minha infância, pelo que dele se ouvia falar (…). (…) Antônio Silvino foi o bandido mais famoso, mais popular e mais humano na história do cangaço. Não só por sua bravura na luta contra a polícia, mas também, pela tática de combate que adotou ao longo de seus vinte anos de duros e cruentos combates (…). (…) Tornei-me amigo desse caudilho sertanejo e dele recebi muitos conselhos, que muito me serviram para orientar-me no convívio com os demais presos comuns (…)”.
Essa amizade se aprofundou
naquele ano de 1917, com Antônio Silvino sendo um verdadeiro conselheiro de
Gregório, e também um leitor e propagador das notícias que vinham da Rússia
publicada nos jornais que chegavam à cela. O que demonstrava que Silvino tinha
uma boa consciência sobre os acontecimentos que ocorriam nos bastidores das
lutas renhidas entre os revolucionários liderados por Lênin, no enfrentamento às
forças do poder de Kerensky.
Gregório tinha passado um período
no isolamento por conta de conflitos que tinha tido com outros presos com mais
poder no presídio. Logo que voltou procurou Silvino, que lhe acolheu,
aconselhou e trouxe boas notícias do que vinha acontecendo na Rússia que se
incendiava na luta pelo socialismo. Relata Gregório Bezerra em seu livro de
memórias: “(…) Por ele soube que os Bolcheviques tinham derrubado o governo, e,
com o poder nas mãos, as terras nas mãos dos camponeses e as fábricas nas mãos
dos trabalhadores, lutariam até o fim e não entregariam jamais o poder a
ninguém. Ele acrescentava: – O povo reunido é mais poderoso do que tudo e a
Revolução dos Bolcheviques vai se espalhar pelo mundo. A lei do maximalismo –
era assim que se referia ao marxismo -, com um homem como este (Lênin) que está
no poder, vai triunfar. Esse homem tem muito juízo e muito talento na cabeça.
Ninguém pode com ele (…)”.
Eles iam se entendendo e mesmo
trancafiados na cadeia compreendiam como canalizar suas revoltas,
identificando-se com a classe trabalhadora, com Antônio Silvino mostrando
grande compreensão em relação aos episódios que ocorriam no mundo. E ele, que
tinha sido muito perseguido nas suas lutas no cangaço, compreendia também das
disputas pelo poder político, e nesse aspecto ajudou muito Gregório Bezerra a
sobreviver e entender o espaço em que ele estava e o que podia ou não falar.
Discorre Gregório: “(…) Antônio
dizia-me essas coisas e pedia que eu guardasse segredo porque era proibido
falar desses assuntos. Replicava-lhe: – Por que é proibido? Os jornais não
falam? Por que não posso falar? – Ele respondeu: – Os jornais falam de um jeito
e você vai falar de outro jeito; isso é proibido pelo governo, que manda seus
macacos prenderem o povo. Como você já está preso vai morrer no castigo (…)”.
Antônio Silvino fez críticas ao
movimento, indicou os erros que teriam sido cometidos e alertou para a
precipitação, observações que foram aceitas por Gregório Bezerra. “(…) Antônio
Silvino, na intimidade, fez algumas críticas ao movimento, achando que o assalto
deveria ter sido simultâneo e bem dirigido e que havíamos agido de maneira
precipitada. Achava que os integralistas eram mais numerosos que os
maximalistas e, além disso, tinham a proteção do governo, da igreja e dos ricos
donos das terras, dos bancos e das fábricas; afirmou que sentia não ver a
vitória da ‘lei do maximalismo’ porque estava no fim da vida (…)”.
Antônio Silvino recebeu indulto
de sua prisão por ato do presidente Getúlio Vargas em 1937 e faleceu em 1944,
no município de Campina Grande (PB).
Em 1979 a editora Civilização
Brasileira publicou o livro Memórias, escrito por Gregório Bezerra. Em 2011 foi
publicada nova edição pela Boitempo Editorial, acrescida com novas fotos,
depoimentos e documentos. Gregório Bezerra se encantou em outubro de 1983.
Essas duas figuras tiveram
encontros inusitados, e, mesmo tendo atuações distintas em suas trajetórias – o
cangaço e a luta revolucionária – se aproximaram, fizeram amizade e se ajudaram
na luta pela sobrevivência no presídio e nos sonhos. E, mesmo presos,
mantiveram-se juntos por um mundo mais igual e “maximalista”, socialista.
*Roberto Arrais é jornalista(repórter-fotgráfico) e mestre em Gestão Pública.
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