Frase do craque no documentário de Emir Kusturica ilustra como o futebol serviu como "doce vingança" dos países pobres contra os ricos
Cynara Menezes
Quando encontrou o craque argentino para fazer um documentário sobre ele, o diretor sérvio Emir Kusturica alardeou, sem modéstia, a ambição de fazer “o melhor filme já feito sobre Diego Maradona”. Maradona by Kusturica, que reúne a série de encontros entre o cineasta e o jogador de futebol entre 2005 e 2008, pode até não ser “o melhor” (recentemente a HBO lançou Maradona, de Asif Kapadia), mas sem dúvida é o que melhor define o astro e suas complexidades futebolísticas, políticas e humanas. Emir entendeu Diego e, visto após a partida de Maradona, o filme soa como um profético obituário, concluído 12 anos antes de a morte surpreender o jogador e seus fãs no mundo inteiro.
“Foi como se tivesse roubado a carteira de um inglês”, ri Maradona ao explicar o famoso gol de mão, a “mano de Dios” que ajudou a Argentina a expulsar a arquirrival Inglaterra da Copa do Mundo de 1986. O documentário é todo pontuado pela célebre trapaça e por animações em que Diego, canhoto dentro e fora do campo, derrota seus inimigos políticos –Margaret Thatcher, a rainha Elizabeth, Ronald Reagan, George Bush e Tony Blair– ao som dos Sex Pistols, enquanto Kusturica aponta como o futebol tem servido historicamente aos países pobres como uma espécie de revanche, “uma doce vingança”, contra os países ricos.
Maradona representou como ninguém este sentimento. Dentro de um esporte que transforma meninos pobres bons de bola em milionários, o craque nascido na miserável Villa Fiorito em uma família de 8 irmãos manteve-se fiel à sua classe de origem, ao contrário de tantos futebolistas que nem sequer retornam à favela onde cresceram. Ronaldo Nazário, por exemplo, sempre preferiu o Leblon a Bento Ribeiro; enquanto Adriano Imperador adora conviver com seus velhos amigos da favela da Vila Cruzeiro –e é criticado e até associado ao tráfico por conta disso.
No caso da Argentina, a “doce vingança” que Maradona perpetrou com os pés (e com a ajuda marota da mão, num mundo pré-VAR) foi a resposta, utilizando suas próprias armas, à guerra das Malvinas, que, quatro anos antes da partida, em 1982, levara à morte cerca de 700 jovens recrutados para o sacrifício pela ditadura militar do país. O craque conta no filme que, já famoso, se recusou a conhecer o príncipe Charles. “Um dia quiseram me apresentar a Carlos, o da Inglaterra. Jamais lhe daria a mão, com tanto sangue”, diz a Kusturica.
A consciência de classe de Diego Maradona o associaria naturalmente aos governantes progressistas da América Latina, de quem foi amigo e apoiador. O filme o acompanha no “Trem da Alba”, que, em 2005, lota cinco vagões de “esquerdopatas” até Mar del Plata no evento promovido por Hugo Chávez para fazer o enterro de Bush e da Alca (Acordo de Livre Comércio das Américas). O resultado foi a recusa dos governos de então de assinar o acordo, que beneficiaria os países mais ricos em detrimento dos pobres. As cenas em Mar del Plata provocam, nos brasileiros sobretudo, o sabor amargo de um sonho destroçado. Com tanta esperança, como chegamos a Bolsonaro?
Kusturica também explora com sensibilidade a fragilidade de Maradona em relação ao vício da cocaína, que, na opinião expressa pelo próprio jogador, o impediu de aproveitar a infância das filhas e de voar ainda mais alto no futebol. “Eu nasci dentro do futebol e sabia tudo o que ia acontecer, só não sabia que ia tomar cocaína. Eu sabia que ia comprar a casa da minha mãe, que iria casar, ter minha família, que ia percorrer o mundo, que ia ser campeão com a Argentina. Está gravado, eu sabia de tudo isso”, lamenta o jogador, se referindo a um vídeo onde, menino, diz que seu sonho é ganhar a Copa. “Emir, que jogador eu teria sido se não tivesse ingerido cocaína?”
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