Homem de touca e máscara olha para o horizonte. Ao fundo, o Cristo Redentor
Da BBC News Brasil em São Paulo
Apesar de queda constante nos
registros de infecções e óbitos relacionados ao coronavírus, acontecimentos
recentes podem alterar perspectivas de controle da pandemia
O final de setembro é marcado
pelo fim do inverno e o início da primavera no Hemisfério Sul. Mas, em 2021,
esse período também pode estar relacionado a outra mudança significativa, ao
menos no Brasil: especialistas indicam que os próximos dias serão decisivos
para entender o futuro da pandemia de covid-19 por aqui.
E isso tem a ver com uma série de fatores que ocorreram nas últimas semanas e que podem ter influência direta no número de casos, hospitalizações e mortes pela doença provocada pelo coronavírus.
Falamos aqui de aglomerações
registradas em protestos, eventos e viagens, o menor impacto da variante Delta
no Brasil, o avanço da vacinação e até o alívio em algumas medidas restritivas
que foram mantidas por cidades e Estados nos últimos meses.
Por ora, as estatísticas trazem certa esperança: desde junho, as médias móveis de casos e óbitos por covid-19 caem constantemente. Mesmo assim, os últimos dias foram marcados por ligeiros aumentos nesses índices.
"De uma maneira geral, podemos dizer que o cenário está cada vez melhor, após aquele período de caos na saúde que vivemos entre março e maio", destaca o epidemiologista Paulo Petry, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas será que os gráficos seguirão
nessa trajetória de queda daqui para frente? E o que cidadãos e gestores
públicos deveriam fazer agora para manter essa onda de boas notícias?
Onde estamos?
O primeiro semestre de 2021 foi
marcado por uma segunda onda altíssima de infecções e óbitos por covid-19 no
Brasil. Os sistemas de saúde de várias cidades entraram em colapso e não
existiam vagas suficientes para suprir a demanda de novos pacientes.
No auge da crise, o país chegou a
registrar médias móveis de 77 mil novos casos e 3 mil mortes pela doença todos
os dias. Não à toa, o país foi classificado como o epicentro da pandemia
naquele momento.
Na virada para o segundo semestre, essas curvas começaram a cair, embora tenham se mantido em patamares muito elevados durante os meses de julho e agosto.
Mais recentemente, ao longo do
mês de setembro, as médias móveis estavam na casa dos 14 mil novos casos e 500
óbitos por covid-19 — números que chegam a ser seis vezes menores do que o
registrado lá no pico da segunda onda.
O que explica essa queda tão
grande? O pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da Fundação Oswaldo
Cruz (FioCruz), destaca o papel das vacinas.
"O que aconteceu nesse meio
tempo foi a vacinação, que teve um efeito muito claro e impressionante. Vimos
uma redução consistente nos casos e nos óbitos", analisa.
A campanha de imunização contra a
covid-19 começou em janeiro e fevereiro de 2021, mas os primeiros meses foram
marcados pela escassez de doses, que serviram para proteger apenas a camada
mais vulnerável da população, como os idosos e os profissionais da saúde.
No meio do ano, a chegada de milhões de unidades de imunizantes permitiu incluir praticamente toda a população adulta brasileira na campanha — no início de setembro, muitos prefeitos e governadores comemoraram o fato de que praticamente 100% dos cidadãos acima de 18 anos já haviam recebido ao menos a primeira dose que protege contra o coronavírus.
Adesão dos brasileiros à campanha
de vacinação foi muito mais alta do que o observado em partes dos EUA e da
Europa
No momento, cerca de 70% de todos
os brasileiros já tomaram a primeira dose e 40% completaram o esquema vacinal
(com a segunda dose ou com a vacina da Janssen, que exige apenas uma
aplicação).
E aqui pesou bastante o fato de o
Brasil ser um dos locais do mundo onde há grande aceitação dos imunizantes. Em
partes dos Estados Unidos e da Europa, a campanha de vacinação até começou bem,
mas esbarra atualmente numa parcela da população que se recusa a tomar as
doses.
Uma nova subida?Apesar da queda sustentada nos números durante os últimos meses, algumas estatísticas mais recentes, colhidas nos últimas dias, mostram um ligeiro aumento nos casos e nas mortes por covid-19.
Na segunda quinzena de setembro,
a média móvel de mortes voltou a ficar acima de 500 por dia no Brasil — no
início do mês, essa taxa estava na casa dos 400.
Outra coisa que chamou a atenção
foi a inclusão repentina de dados que estavam represados em alguns Estados. São
Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, incluíram 150 mil casos de covid-19
"atrasados" no sistema de vigilância.
Isso fez com que a média móvel de
casos explodisse de um dia para outro: segundo o site do Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), essa taxa estava em 14 mil no dia 17 de setembro
e pulou para 34 mil em 18/9.
De acordo com informações divulgadas
pelas próprias Secretarias Estaduais de Saúde, o e-SUS Notifica, a plataforma
onde esses números são registrados, passou por atualizações e ajustes.
Com isso, as equipes responsáveis
por realizar a notificação encontraram algumas dificuldades nos últimos dias. A
expectativa é que as curvas voltem a se normalizar em breve, mas é preciso
acompanhar se isso realmente acontecerá ou teremos efetivamente um novo aumento
entre o finalzinho de setembro e o início de outubro.
7 de setembro
Ainda entre as possíveis ameaças
com potencial de quebrar essa sequência de boas notícias, os especialistas
chamam a atenção para o que ocorreu no feriado do dia 7 de setembro.
"Nesta data, tivemos
manifestações em várias cidades do país e muitas pessoas também aproveitaram
para viajar", destaca o virologista José Eduardo Levi, coordenador de
pesquisa e desenvolvimento da Dasa.
Em locais como Brasília, São
Paulo e Rio de Janeiro, centenas de milhares de brasileiros se reuniram para
demonstrar apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em setembro,
também ocorreram manifestações contra o presidente.
"E nós vimos pelas imagens
que as pessoas estavam aglomeradas e muitas não usavam máscara"
complementa o cientista, que também faz pesquisas no Instituto de Medicina
Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
A janela entre o contato com o
coronavírus e o desenvolvimento da covid-19 costuma demorar até 15 dias. Ou
seja: se alguns indivíduos que estiveram aglomerados no dia 7 de setembro se
infectaram e criaram novas cadeiras de transmissão a partir dali, os efeitos
práticos disso só serão sentidos do dia 22/9 em diante.
"O último feriado foi a
prova dos noves. Os eventos ocorreram em plena circulação da variante Delta e
precisamos ver como isso repercutirá na pandemia a partir de agora",
completa Levi.
A Delta triunfou ou refugou?
Falando em variantes, um terceiro
aspecto que ajuda a explicar os números recentes tem justamente a ver com a
Delta, que surgiu no final de 2020 e causou (e ainda causa) um enorme estrago
em várias partes do mundo, como Índia, Indonésia, Reino Unido, Israel e Estados
Unidos.
As novas ondas de casos e mortes
relacionadas a essa nova linhagem viral no mundo deixaram os pesquisadores
brasileiros de cabelo em pé: o que impediria a Delta de provocar o mesmo
problema em nosso país?
Alguns grupos de pesquisa que
fazem a vigilância dos coronavírus que estão em circulação mostraram que essa
variante se tornou dominante em algumas cidades, como São Paulo e Rio de
Janeiro, a partir de agosto.
Mas, felizmente, a realidade
contraria essas expectativas e não houve um aumento das internações e mortes
por covid-19 no Brasil, pelo menos até agora.
"Em locais como Londres,
Nova York e Israel, passaram-se cerca de dois meses entre a chegada da Delta e
um grande aumento no número de casos de covid-19", calcula Levi.
"As projeções matemáticas
indicavam um cenário catastrófico para o Brasil também. Mas essa variante foi
detectada aqui no começo de junho, então a explosão de casos deveria ocorrer em
agosto. Já estamos no final de setembro e os números não subiram",
conclui.
Mas como explicar isso? Por que
essa variante não foi um bicho de sete cabeças até agora no Brasil, como se
esperava?
De acordo com os especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil, há algumas teorias que podem ajudar a entender
esse fenômeno.
O primeiro deles é novamente o avanço da vacinação: apesar de as doses disponíveis perderem um pouco da efetividade contra a Delta, elas continuam a funcionar relativamente bem, especialmente contra as formas mais graves da covid-19, que exigem hospitalização e intubação.
O segundo motivo está relacionado
àquela segunda onda de casos que acometeu o país entre março e maio.
"Tivemos muitas pessoas
infectadas, então ainda há uma resposta imune natural relacionada à variante
Gama, que foi responsável pelo pico registrado no primeiro semestre",
contextualiza Levi.
Juntos, esses dois ingredientes
podem ter feito com que uma parcela considerável da população brasileira ainda
tenha um bom nível de anticorpos, seja pela vacinação ou pela infecção natural
(que, aliás, nunca é desejável, pois isso está relacionado ao aumento de
mortes). E, por sua vez, essa soma de fatores poderia ter sido capaz de barrar
uma nova onda de infecções pela Delta.
Vale reforçar aqui que essas são
apenas suspeitas e ainda não existem evidências científicas sólidas para
confirmar a ligação entre essas duas coisas.
Para onde vamos?
Num cenário positivo, mas com
algumas incertezas importantes, os especialistas entendem que é preciso
observar o que acontecerá nas próximas semanas antes de ter a certeza de que o
pior já passou.
A epidemiologista Ethel Maciel,
professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), pondera que a
pandemia no Brasil parece estar sempre atrasada em relação ao que ocorre em
algumas partes do Hemisfério Norte.
"Até o momento, as curvas
epidemiológicas da covid-19 nos Estados Unidos e na Europa se repetiram algumas
semanas depois em nosso país", lembra.
E a situação de momento nesses
locais não é das melhores: com o avanço da Delta e as dificuldades em convencer
parte da população a tomar as vacinas, o número de casos e mortes voltou a
subir de forma considerável por lá. Em terras americanas, por exemplo, já são
registrados mais de 2 mil óbitos por covid-19 todos os dias, de acordo com os
últimos boletins.
Será que o mesmo cenário vai
acontecer no Brasil? Ninguém sabe. "Dada nossa cobertura vacinal, a
tendência é que a gente mantenha essa queda nos dados ou a situação se
estabilize num certo patamar de casos e mortes", projeta Bastos, da
FioCruz.
"Agora, não temos certeza se
esse patamar será 'aceitável' ou ainda estaremos com muitas hospitalizações e
mortes por infecções respiratórias todos os dias", completa.
Falamos aqui de probabilidades. E
é preciso ter em mente outras coisas que podem aparecer pelo caminho, como o
surgimento de uma nova variante ainda mais potente que a Gama ou a Delta e com
capacidade de driblar completamente as vacinas.
"Uma coisa que aprendemos
durante essa pandemia é o quanto o coronavírus é imprevisível, portanto não
podemos cantar vitória ainda", concorda Levi.
O efetivo controle da pandemia depende do engajamento da população, que precisa ir aos postos de saúde para tomar a primeira, a segunda ou, se for o caso, a terceira dose dos imunizantes.
"Também devemos tomar muito
cuidado com as medidas não farmacológicas, como usar máscaras de qualidade e
evitar aglomerações", diz Maciel.
"Não podemos cometer o mesmo
erro dos Estados Unidos, que retirou a obrigatoriedade das máscaras e precisou
voltar atrás logo depois. Retomar essas políticas é sempre muito difícil",
diz a epidemiologista.
Petry entende que as reaberturas
anunciadas por Estados e municípios do Brasil também precisam ser feitas aos
poucos e com muito cuidado. "A flexibilização precisa ser gradual, e não
aquele oba-oba que vimos na Europa", conta.
"E os gestores precisam
sempre acompanhar os números e ter pulso para agir a tempo caso percebam uma
piora", sugere o epidemiologista da UFRGS.
No reino das incertezas, será necessário aguardar as próximas semanas de setembro e outubro para entender se o futuro da pandemia no Brasil será marcado por frustração ou esperança.
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