JOICE, DE 25 ANOS, FOI MORTA E EMPAREDADA EM SÃO VICENTE-SP. FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Joice, 25 anos, foi estuprada, estrangulada e concretada numa parede em São Vicente; ser mulher no Brasil é macabro como um conto de terror.
Por Cynara Menezes
Em 1886, o escritor recifense
Carneiro Vilela publicou o romance A Emparedada da Rua Nova, que conta a
história da jovem Clotilde, cujo pai, o imigrante português Jaime Favais,
encontrou uma forma de esconder sua gravidez e “preservar-lhe a honra”: emparedou-a
viva no próprio quarto com a ajuda de um pedreiro.
Não se sabe até hoje se a ficção se baseou numa história real, porque a história da mulher emparedada já circulava havia tempo na capital pernambucana como “lenda urbana”. O livro, relançado pela editora Cepe em 2013, foi adaptado pela rede Globo e transformado em minissérie sob o título de Amores Roubados no ano seguinte. Em 2015, foi levado aos palcos como um espetáculo de dança pela paulista Eliana de Santana.
Pouco antes, uma jornalista e
mestra em literatura, Mirella Izídio, havia revelado que Carmélio dos Santos
Vilela, neto do escritor, afirmou no livro Carneiro Vilela: nascimento, vida e
morte, que o assassinato e o consecutivo emparedamento de fato existiram. “É
questão praticamente indissolúvel: quem nasceu primeiro, a obra do escritor ou
o causo que passa de boca em boca?” questiona Mirella.
“O parente do autor d’A Emparedada retrata, com uma certa naturalidade até, que o romance foi ‘baseado em fato verídico, que aconteceu no primeiro andar de um sobrado, da Rua Nova, onde existe hoje um edifício, que tem o nº 200′”, ela mesma responde, no artigo De neblina e de concreto: um estudo sobre a construção de realidades n’A emparedada da Rua Nova, publicado pela revista de estudos literários Crátilo, da UNIPAM, em 2012.
No México também circula outra
lenda de mulher emparedada, La Novia Emparedada de Ixtapaluca, com enredo
similar: uma bela jovem, Gervasia, filha de um rico fazendeiro, se apaixona por
um trabalhador e o pai, que rejeitava a relação da herdeira com um empregado,
acaba por emparedá-la às vésperas do casamento com o peão, após lhe dar uma
surra que a deixara desacordada.
Corta para o Brasil de 2021, vida real. Joice Maria da Glória Rodrigues, de 25 anos, casada e com duas filhas pequenas, estava desaparecida desde 27 de setembro em São Vicente, São Paulo. Saíra para visitar o avô, que mora no bairro Parque Bitaru, na Área Insular, ficou no local até por volta das 19h, e nunca mais foi vista. Nesta terça-feira, a polícia descobriu que Joice foi estuprada por um pedreiro, estrangulada com uma camiseta e emparedada por ele em um imóvel em construção na Rua Senador Lúcio Bittencourt, no bairro Esplanada dos Barreiros. O corpo foi concretado em uma parede, embaixo de uma escada.
Segundo o site G1, o proprietário
do terreno foi questionado pela polícia sobre áreas recém concretadas ou
frescas existentes na obra. “Ele respondeu que não havia nenhuma, entretanto,
nesta terça, pensando na possibilidade levantada pelos policiais, observou que,
no banheiro do piso térreo, embaixo da escada, o vão havia sido fechado, com um
acabamento mal feito. Diante disso, ele golpeou uma vez, e sentiu um forte
odor. Ele acionou os policiais civis, que se dirigiram ao local e derrubaram
parte da parede, constatando que o corpo estava dentro.”
Os casos de feminicídio no país
cresceram durante a pandemia de coronavírus. Pelos registros oficiais, no ano
passado 1338 mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, a maioria
delas por companheiros ou ex-companheiros e sempre com requintes de crueldade.
Todos os dias o noticiário traz
relatos assim: no dia 6 de setembro, a influenciadora Bruna Quirino, de 38
anos, foi assassinada a facadas pelo marido na presença da filha do casal;
Marcela da Silva Soares, de 19 anos, foi torturada e estrangulada em um motel
de Palmas, Tocantins, no dia 20 de setembro; Vittória Samilly, de 18 anos, foi
morta a tiros no domingo, 3 de outubro, enquanto dançava com amigos na praia em
Porto Seguro, Bahia; no mesmo dia, em Bonito de Santa Fé, Paraíba, Marilene
Monteiro, de 52 anos, foi baleada e morta pelo companheiro, que também feriu o
filho dela.
Emparedadas pelo machismo, ser mulher no Brasil é macabro como um conto de terror.
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