Documentos secretos do Itamaraty comprovam que a ditadura
brasileira sabia do golpe de estado no Chile mais de um mês antes do presidente
Salvador Allende ser deposto, reforçam a tese de que golpistas brasileiros
foram, ao lado dos Estados Unidos, os principais articuladores do golpe que
derrubou o primeiro presidente socialista eleito pelo voto popular no mundo, e
ainda demonstram o intenso monitoramento das atividades dos exilados
brasileiros que viviam naquele país.
Najla Passos - Brasília
Brasília - Documentos secretos do Itamaraty, agora abertos à
consulta pública no Arquivo Nacional, comprovam que a ditadura brasileira sabia
que iria ocorrer um golpe de estado no Chile mais de um mês antes do presidente
Salvador Allende ser deposto, em 11 de setembro de 1973. E reforçam a tese
defendida por pesquisadores da Operação Condor de que os militares brasileiros
e seus aliados civis foram, ao lado dos Estados Unidos, os principais
articuladores do golpe que derrubou o primeiro presidente socialista eleito
pelo voto popular no mundo.
Os documentos foram produzidos pelo Centro de Informações do
Exterior (Ciex), o serviço secreto criado pelo Itamaraty em 1966 para auxiliar
a ditadura brasileira a combater o chamado “perigo vermelho”. Além de
demonstrarem a proximidade entre a diplomacia brasileira e os militares
golpistas chilenos, revelam que os exilados e banidos brasileiros no Chile
tiveram todos seus passos monitorados pelo Ciex, a serviço do Serviço Nacional
de Informação (SNI), o temido órgão central de inteligência do governo
ditatorial.
No dia 8 de agosto de 1973, 35 dias antes do golpe, o
Informe nº 389, não assinado, alertava a ditadura brasileira de que os altos
chefes militares chilenos haviam realizada uma reunião secreta, seis dias
antes, na base aérea El Bosque, em Santiago, para examinar “as várias medidas
adotadas pelos militares brasileiros quando da revolução de 31 de março de
1964, a fim de determinar em que tal experiência poderia ser útil ao Chile”.
Conforme o documento, eles discutiram também a conjuntura chilena e o papel das
forças armadas do país perante a crise.
Pelo relato do Ciex, estiveram presentes à reunião o
comandante-chefe da Força Aérea Chilena, general-aviador Cesar Ruiz, o
comandante da 1ª Zona Naval, Ernesto Jobet, representando o vice-almirante José
Turíbio, e o diretor da Aviação Naval, comandante Ernesto Huber Von Hapen, além
de diversos oficiais reformados da Marinha e da Aeronáutica. Ruiz havia
afirmado que o Chile “estava sob o fio da navalha” e que a adesão a um possível
golpe militar se alastrava pelas forças armadas.
No informe, os diplomatas brasileiros avaliam que, desde que
começaram a discutir um possível golpe contra o “governo marxista de Allende”,
as forças armadas chilenas sempre respeitaram a hierarquia militar e procuraram
firmar a maior coesão possível entre elas para derrotar o presidente marxista.
O documento termina elogiando uma entrevista coletiva
concedida à imprensa chilena pelo general Alfredo Canales, que lançara as bases
para a constituição da Junta Unificadora Nacional (JUN), o partido político que
viria a dar sustentação à ditadura. Segundo o informe, “essa coroação pode
servir para coroar os esforços, até aqui desenvolvidos clandestinamente, de
motivar os militares para uma intervenção contra o governo marxista de Salvador
Allende”. Ao final, o Ciex registra a seguinte nota: “O presente informe não
poderá ser difundido para serviços de informações estrangeiros”.
No mesmo dia, o Ciex emitiu o Informe nº 390, sobre o
agravamento da situação no Chile. “Mais uma vez, em menos de 60 dias, a
situação política chilena torna-se gravíssima. O governo parece ter perdido
virtualmente o controle do país”, diz o documento. De acordo com o Itamaraty, o
fracasso das conversações entre Allende e o presidente do Partido Democrata
Cristão (PDC), a continuidade da greve nos transportes, a anunciada adesão do
comércio à paralisação e a escalada terrorista, que teria somado mais de 200
atentados nos últimos 15 dias, seriam o pano de fundo para a crise.
O Informe relata ainda que Allende estaria planejando
realizar uma reforma ministerial para incluir militares no seu staff, como
forma de responsabilizá-los pela manutenção da ordem no país. Para o Itamaraty,
a medida prejudicaria uma possível “intervenção” (termo a que se referiam ao
golpe).
Após relatar o desgaste do governo perante os militares, com
a antecipação da reforma de dois generais e outras medidas, o documento do CIEX
alerta que circulam boatos de que o golpe poderá ocorrer nas próximas 24 horas.
No dia seguinte, o Informe nº 393 se desculpa pelas
informações contraditórias do dia anterior, justificadas pelo “rápido
desenrolar dos acontecimentos”. Relata que, de fato, conforme antecipado, foram
designados quatro militares para os cargos de ministros de estado. Um deles era
o próprio o comandante-chefe da Força Aérea Chilena, general-aviador Cesar
Ruiz, que havia participado da reunião secreta para discutir o golpe, no dia 2.
E mesmo apesar dos militares terem aceitado integrar o staff
do governo socialista de Allende, o documento era taxativo: “atualmente existe
um verdadeiro consenso da oficialidade das forças armadas chilenas no sentido
de que a única solução para o país é a intervenção militar, porém o problema
continua sendo o de uma liderança efetiva para o movimento”. O Itamaraty
avalia, também, que a falta de uma liderança era o motivo pelo qual, desde a
tentativa frustrada de golpe em junho, três outras rebeliões estiveram a ponto
de estourar, mas foram abortadas.
Os documentos não fazem nenhuma referência ao general
Augusto Pinochet, que viria a ser a principal liderança do golpe, tido até
então por muitos como pessoa ligada à Allende.
O documento também tece comentários sobre a situação
econômica do Chile e a criação da JUR. “É inevitável concluir que um movimento
armado contra o governo marxista de Salvador Allende é inevitável, porém tanto
poderá ocorrer nos próximos dias como em um prazo mais longo”.
No dia 13 de agosto, o Informe nº 396 levanta a insatisfação
das forças armadas chilenas com a nomeação dos quatro militares para o staff do
governo. “Consideram os militares que Allende teria, com esta manobra, visado a
um duplo objetivo: ganhar tempo para que as esquerdas continuem se fortalecendo
e provocar a desmoralização das forças armadas”, diz o documento.
Segundo o Itamaraty, a impressão predominante nas forças
armadas chilenas é que os ministros militares nada poderão fazer para resolver
a crise chilena e que, procurando tomar medidas acertadas, tudo o que lograrão
é desgastar ou comprometer as devidas forças. “Por isso mesmo, a única solução
para o problema chileno é o golpe militar, ao qual só o Exército ainda se
mostra, em parte, hesitante”, defende.
O Informe nº 402, de 20 de agosto, é decisivo para
demonstrar a proximidade das autoridades diplomáticas brasileiras e os
militares insurgentes, que planejavam o golpe. O nível de detalhamento das
informações obtidas pelo Itamaraty é revelador. O documento relata o
agravamento da crise, com o pedido de demissão do general Cesar Ruiz do cargo
de ministro de Obras Públicas.
Segundo o Ciex, era possível observar forte inquietação na
marinha e na aeronáutica. A exceção era o exército chileno, em função do forte
respeito hierárquico a figura do general Carlos Pratz e outros cinco ou seis
generais simpatizantes do regime ou defensores da tese legalista. “Diante desta
quadro, fontes idôneas e bem situadas consideram possível um desenlace nos
próximos dias, podendo culminar com a queda do governo Allende”.
Monitoramento dos exilados
Outro Informe, produzido no dia seguinte, demonstra que o
Itamaraty mantinha total controle das atividades dos exilados e banidos
brasileiros que, à época, vivam no país. O Informe nº 404 relata que, durante
as 48 horas que precederam a posse do novo ministério, toda a esquerda chilena
em condições de atuar fora mobilizada para evitar uma nova tentativa de golpe
contra Allende.
O documento afirma também que, segundo alguns asilados
brasileiros ligados ao Partido Comunista Chileno (PCCh), a tática do partido à
época era tentar equilibrar a situação, pelo menos pelos próximos seis meses,
porque a pior crise econômica estaria por vir, em novembro próximo. Ainda
segundo o informe, após fevereiro de 1974, haveria um alívio considerado,
devido à ação do governo. Os brasileiros responsáveis pelas informações
grampeadas seriam Almino Afonso, Ulrich Hoffman reger e Armando Ziller.
O Informe observava ainda que a tática do Partido Socialista
(PS) era reprimir os militantes de ultraesquerda para justificar a repressão também
contra a direita. O comunicado atribui à deputada Carmem Lazo a avaliação de
que, se Allende superar 1973, o ano seguinte seria bem mais tranquilo e a
Unidade Popular (UP) poderia vencer as eleições de 1976, tendo a sua frente uma
figura como o general Carlos Pratz ou Gabriel Valdez (PDC). Ambos de tendências
constitucionalistas. A UP foi a coalizão de esquerda que elegeu Allende e deu
sustentação ao seu breve governo.
Participação brasileira
O médico e político Salvador Allende foi eleito presidente
do Chile em outubro de 1970. Governou com muita dificuldade até 11 de setembro
de 1973, quando foi deposto por um golpe de estado comandado por seu chefe das
forças armadas, Augusto Pinochet. Morreu no Palácio de La Moneda, durante a
invasão das tropas ditatoriais. Até hoje não se sabe se foi assassinado ou se
teria cometido suicídio.
A participação do Brasil no golpe é defendida por
pesquisadores como a jornalista e escritora chilena Mónica Gonzalez, autora do
livro “La Conjura - Os Mil e Um Dias do Golpe”, o ex-assessor de Allende e
atual diretor do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD), Heraldo Muñoz,
autor de “A Sombra do Ditador - Memórias Políticas do Chile sob Pinochet”, e o
historiador brasileiro Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, autor de “Fórmula
para o Caos”.
Nessas obras, os autores relatam a intensa relação entre o
embaixador brasileiro no Chile à época, Antônio Castro de Alcântara Canto, com
os militares golpistas. Há denúncias de que reuniões preparativas para o
chegaram a ocorrer na sede da embaixada brasileira e de que Castro foi o único
brasileiro presente à posse de Pinochet, entre outras evidências.
No Seminário Internacional sobre a Operação Condor,
realizado pela Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça, na Câmara, no
mês passado, Mónica Gonzalez cobrou do governo brasileiro a apuração sobre a
participação do país no golpe. “Nós sabemos foram os empresários brasileiros
que financiaram a junta militar responsável pelo golpe. E que as primeiras
armas que chegaram ao Chile para apoiar Pinochet saíram do Exército brasileiro.
Queremos que essa história seja esclarecida e os culpados, punidos”,
reivindicou.
Carta Maior Via TERRA BRASILIS
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