Conflitos agrários meio a disputa entre apropriação
individualista da terra e convivência dos povos nas “terras livres."
"Distribuindo o fruto multiplicado através da luta pela
terra: toneladas de alimentos, solidariedade e amorosidade" - Wellington
Lenon.
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*Thais Giselle Diniz Santos
No Brasil de Fato - Curitiba (PR)
Conflitos fundiários que se prolongam e resistência popular.
As famílias rurais do centro-sul paranaense já viveram momentos de desespero
pela violenta expropriação de suas terras. Em 2017, a comunidade de posseiros
Alecrim, de Pinhão (PR), ficou conhecida por sofrer um despejo violento e
repentino, que destruiu 23 anos de trabalho concretizado nas terras ocupadas.
Com bravura, a comunidade retornou para suas terras e se reconstruiu do chão,
podendo hoje colher de suas roças e doar mais de 500 quilos de alimentos
saudáveis. Este não foi um fato isolado na região.
A resistência camponesa e cabocla e as sistemáticas
apropriações desiguais de seus territórios fazem parte da história do
centro-sul do Paraná. Assim como a comunidade do Alecrim, outras milhares de
famílias rurais, de 30 comunidades, entre posseiros, acampados, assentados e
faxinalenses se unem pela solidariedade e juntas doam mais de 50 toneladas de
alimentos, demonstrando na prática que um modelo sustentável de uso da terra é
possível e garante alimentação saudável, respeito à natureza e trabalho digno
no meio rural.
As ocupações da região de Guarapuava não foram espontâneas,
as ações estatais e o ideal de desenvolvimento econômico tiveram papel
essencial, refletindo a ilusão da disjunção entre terra e povos, tratados, por
vezes, como inconciliáveis. O entrelaçamento de movimentos de povoamento e a
avidez gerada pelos ciclos de exploração econômica são o plano de fundo nos
dissensos que parecem apenas refletir um poder sobre a terra, mas que expressam
também intolerância com as diferentes culturas de vida. É uma questão de
gentes.
Na região centro-sul do estado do Paraná, onde se localizam
Pinhão e Guarapuava, uma área de campos e florestas, foram registrados
movimentos de expansão de povoamento do interior do estado, tendo desde os
primórdios da reocupação, decorrente da chegada europeia, presença
significativa de população tradicional e de povos indígenas, como se verifica
pelos relatos de ancestrais da região.
As pesquisadoras Liliana Porto e Dibe Ayoub, em publicação
no livro “Memórias dos Povos do Campo no Paraná Centro-Sul”, remontam aos
escritos de Padre Francisco das Chagas Lima, ao tratar da presença de vários
grupos indígenas na região de Guarapuava nos anos de 1820. Conforme as pesquisadoras,
estas populações passam a ser desconsideradas nos relatos oficiais da região,
mediante a total expropriação que sofrem e a mobilização da categoria
“caboclo”, responsável por diluir os grupos no universo “mestiço”.
Caboclo, por vezes um termo usado de forma pejorativa,
representa, sem dúvidas, o desprezo dos europeus à ancestralidade não europeia
(dos nativos e negros), mas também é uma categoria que concretiza uma potente
resistência, que permitiu a sobrevivência da herança indígena nas gerações que
se seguiram, através de suas práticas.
Apropriação da terra e conflitos com os povos
As sesmarias estão nas origens do acesso à terra no estado
do Paraná, durante período de reocupação (1650), modelo pelo qual a apropriação
da terra pela posse convive com uma titulação concentrada e patrimonialista.
Entre 1822 e 1850, as posses foram usadas amplamente no estado do Paraná,
período entre a extinção das sesmarias e o surgimento do procedimento de compra
e venda, pela Lei de Terras (Lei 601, de 1850), responsável por consolidar as
investidas de parcelas que aproveitaram historicamente para se apropriar de
extensas áreas. Após a Lei de Terras, o Estado promove a colonização de terras
vendendo títulos para grandes companhias colonizadoras, maioria estrangeira.
Consolida-se o legado histórico de violentos conflitos e revoltas.
Política, direito e movimentos sociais são tangíveis quando
olhamos para os desdobramentos das formas institucionais de apropriação da
terra sobre a região centro-sul do Paraná, a qual possui especificidades que
dizem muito sobre o atual perfil da ruralidade paranaense. Ali, articularam-se
importantes ciclos da economia regional, o tropeirismo, a exploração da madeira
e da erva-mate, desenvolvida, curiosamente, de forma atrelada aos povos
tradicionais. Esta região conviveu com grande diversidade de processos de luta
pela terra, diante da apropriação individualista ali verificada pela atuação
institucional, porém ao lado de sistemas de uso comum da terra, em uma grande
diversidade.
As lutas pela terra e seus povos
Ainda durante o tropeirismo, os arredores das fazendas dos
Campos Gerais concentraram um grande aglomerado de escravizados. Nessa região
de campo, em que as fazendas se conjugam ao agronegócio, reside uma elite
proprietária, com forte histórico de escravidão, razão pela qual também se
torna território de ligação e memória da ancestralidade dos povos negros. A
comunidade quilombola Paiol de Telha, cujo reconhecimento de domínio coletivo
foi determinado pela 11ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, permite proteção
e acesso às memórias da existência e resistência negra naquela região.
Para além das áreas de campo, a região do centro-sul
paranaense abriga as áreas de floresta, que passaram por movimentos de
colonização menos sistemáticos, com população diversa que se dispersou em busca
de “terras livres”, meio às matas mistas de araucária. Nessas áreas,
consolidou-se o chamado sistema dos faxinais, no qual a posse se consolidava
com a simples construção de uma moradia, trabalho na terra e participação nos
criadouros comum. Muitas dessas famílias compartilham um histórico de fugas e
lutas de seus antepassados por um lugar para viver e uma terra para trabalhar,
tendo passado por guerras, como a do Contestado (1912-1916) e a Revolução
Federalista (1893-1895).
O ciclo madeireiro e os posseiros
O ciclo da madeira deixou muitas marcas para as populações
que habitam essas áreas de floresta, que se prolongam no tempo. A empresa João
José Zattar S/A é um grande personagem nesta dinâmica. Chegou em Pinhão em 1940
e apropriou-se das áreas de floresta. Por algum tempo, a empresa conviveu com
os habitantes, sem imediata expulsão generalizada de seus povos. Porém, na
década de 1970, os conflitos entre moradores e a empresa Zattar S/A se
exacerbaram, criando o reconhecimento de uma nova categoria social: os
posseiros.
Os posseiros unem-se na região na medida em que se
consideram lesados, em alguma medida, pela empresa, pois desenvolveram uma
posse no trabalho sobre as áreas, que é histórica, pelo que reconhecem seu
direito sobre a terra, entrando em conflito com o título do proprietário da
empresa. É um movimento amplo que engloba até mesmo novos sujeitos que adentram
o local a partir de 1990, mediante a venda das propriedades pelas Indústrias
Zattar.
Em meio a tantos poderes e vivências nestas áreas, os
conflitos assumem tamanha amplitude, que a Assembleia Legislativa do Paraná
instaura uma Comissão Parlamentar de Inquérito, concluída em 1991, em seguida,
em 1994, pela criação da equipe de trabalho ELEPIÃO (Programa Especial de
Regularização Fundiária do município de Pinhão).
Estamos no ano de 2020 e a maior parte dos conflitos
permanece. Processos de reintegração de posse têm andamento sem a busca pela
regularização fundiária, direitos fundamentais são negados e uma grande parte
da população rural do município de Pinhão permanece como posseira, como é o
caso das famílias que habitam o “Faxinal dos Ribeiros”. As famílias rurais da
região convivem com os riscos de viver outra expropriação, assombrados pelas
fugas e perdas geradas das guerras históricas de apropriação das terras e pelo
recente trauma dos despejos das comunidades do Alecrim (2017).
A região centro-sul é paradigmática, representa uma
encruzilhada que expressa diversidade da luta pela terra e impactos de ciclos
econômicos, legislações e política estatais na apropriação e vida sobre o
território. Um caldeirão de mobilizações, intensificado com a presença de
outros grupos políticos de luta pela terra, como Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) e Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses.
Todos esses sujeitos, cada qual de forma muito especial,
compartilham em comum uma antiga luta, a busca por uma terra livre para viver
com suas famílias, produzindo alimentos e construindo comunidades vivas. Nesse
final de maio, são estas famílias, faxinalenses, caboclas, quilombolas,
posseiras, que se unem para fazer algo que sabem bem: com bravura, colher suas
roças e compartilhar a comida boa fruto do trabalho familiar, abraçando as
comunidades urbanas de Pinhão e Guarapuava, distribuindo o fruto multiplicado
através da luta pela terra: toneladas de alimentos, solidariedade e
amorosidade.
*Thais Giselle Diniz Santos é advogada e assessora da
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná
Fonte: BdF Paraná
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