Meu pai me apresentou o mar. O mar que tanto amo e onde nada eternamente o meu Marcelo, chamado carinhosamente pelos seus amigos de “peixinho”. Naquele recinto onde guardamos as recordações mais longínquas, está um passeio dominical com meu pai e meu avô Nicolau para ver o mar. E foram muitas idas à praia, quando meu pai fazia longas caminhadas. Mas Sálvio Dino me apresentou um oceano maior do que o Atlântico: os livros.
Por *Flávio Dino
Conheço o luto. Todos nós
conhecemos ou somos destinados a conhecer. Eu conheci do pior modo para um pai:
a perda de um filho tão amado, brutalmente arrancado de mim por graves
imperícias profissionais em um hospital. Dor que rasga a alma e que não tem
passado, só presente, traduzida em lágrimas diárias na face e no coração. Este
último agosto me trouxe mais um motivo de luto. O coronavírus, esse causador de
terrível doença, levou meu pai, aos 88 anos.
Sálvio Dino teve uma longa vida,
cheia de sonhos, marcada por vitórias e frustrações, como é o destino humano.
Muito jovem se fez político e escritor. E assim foi até os momentos finais.
Como político, muitas passagens poderiam ser lembradas. Escolho três. A
primeira, a violenta cassação do seu mandato parlamentar em abril de 1964, logo
nos atos iniciais das trevas ditatoriais que caíram sobre a nossa Pátria por
mais de 20 anos. Como registro da história, Sálvio Dino deixa o seu corajoso
discurso no dia da sua degola política, denominado “Oração da Despedida”. Nela,
confirma sua crença na reforma agrária e na justiça social. Da tribuna da
Assembleia foi levado para o arbitrário cárcere, sem ter cometido qualquer
crime, apenas por suas ideias.
Na minha memória, tenho também a sua preocupação em ser um eficiente legislador, empenhado em propor boas leis. Muitas se tornaram realidade, como o projeto que pioneiramente determinava a criação de uma Universidade Estadual sediada em Imperatriz, proposta que tive a alegria de concretizar com a criação da UEMASUL, já no nosso mandato governamental. Mas, sobretudo, sublinho o caráter inovador dos projetos que Sálvio Dino propôs sobre a temática ambiental ainda nos anos 80, como a lei que protege as nossas palmeiras de babaçu.
Quanto à atuação política do meu
pai, há outro ensinamento que muito me marcou. Ele foi prefeito da cidade de
João Lisboa, por duas vezes. Não fez fortuna, sequer deixou bens materiais em
herança. Morava na mesma casa, em João Lisboa, sempre mantendo-a de portões
abertos até sua derradeira saída para o hospital, de onde não voltou.
O Sálvio Dino escritor amava a
literatura. Nos últimos anos, dedicou-se a semear e apoiar Academias de Letras.
Lembro a sua alegria quando inauguramos uma biblioteca pública em João Lisboa e
a sede da Academia Grajauense de Letras. Meu pai escreveu contos, artigos
jornalísticos, poesias, estudos históricos. Escreveu muito e tinha muito
orgulho de pertencer à Academia Maranhense de Letras, guardiã maior da cultura
do nosso Estado. Mas, acima de tudo, Sálvio Dino amava a oratória. Foi um dos
maiores oradores que conheci. Voz firme, belas imagens, variedade de técnicas,
largueza de gestos. Quando eu discursava na sua presença, ao finalizar sempre
buscava seu olhar para ler a sua avaliação silenciosa, fruto de uma intimidade
que não pode ser traduzida em palavras, só alcançável pelo amor que une pais e
filhos. E como eu me empenhava para impressioná-lo e para ele ter a certeza de
que eu tinha sido um atento e dedicado aluno.
Meu pai me apresentou o mar. O mar que tanto amo e onde nada eternamente o meu Marcelo, chamado carinhosamente pelos seus amigos de “peixinho”. Naquele recinto onde guardamos as recordações mais longínquas, está um passeio dominical com meu pai e meu avô Nicolau para ver o mar. E foram muitas idas à praia, quando meu pai fazia longas caminhadas. Mas Sálvio Dino me apresentou um oceano maior do que o Atlântico: os livros. “Leia os clássicos” – certamente foi o que mais ouvi dele quando criança e adolescente. Ele aconselhava e dava o exemplo, pois não me lembro de um único dia em que ele não tivesse um livro nas mãos. Foi assim até no hospital, já doente.
A doença que o levou permitiu que
ele me desse a sua derradeira lição neste plano existencial: o profundo amor
pela vida. Dela não desistiu em nenhum momento e lutou contra o coronavírus,
com coragem e humildade. Na nossa última conversa, ele já no leito hospitalar,
falamos sobre literatura, política e futebol. E ele me disse que tinha um livro
para terminar de escrever. Pode haver melhor síntese e maior lição?
Deus sabe o quanto tem sido difícil esse período em que me cabe liderar a prevenção e o combate ao coronavírus no Maranhão. O que já era difícil ficou ainda pior, com tantas lembranças. A aliviar este peso, de quando em quando ouço a voz do meu pai declamando Gonçalves Dias para mim, horas antes de morrer: “Não chores, meu filho; Não chores, que a vida; É luta renhida: Viver é lutar.”
*Governador do Maranhão (PCdoB). Advogado e professor da Universidade Federal do Maranhão. Foi juiz federal, deputado federal e presidente da Embratur. Membro da direção nacional do PCdoB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário