Rafael Guimaraens, um escritor e editor de seu tempo -
Larissa Ferreira
Walmaro Paz
No Dia Mundial do Livro, o
escritor comenta o desafio de escrever e editar em um país que não lê.
Rafael Guimaraens começou como
jornalista transitando por várias redações, entre elas a do lendário Coojornal,
virou assessor de imprensa e descobriu-se escritor para, em nova
autodescoberta, tornar-se editor, ao lado de sua companheira Clô Barcellos. É a
dobradinha que, pilotando a editora Libretos, há mais de 20 anos escava,
esmiuça e mapeia a história política, social e cultural de Porto Alegre.
Nesta jornada, todos nós ficamos
sabendo mais sobre a enchente que arrasou a cidade em 1941, a efervescência
local do movimento estudantil sob a ditadura, o levante dos gaúchos contra o
fracassado golpe militar urdido pelos militares contra João Goulart em 1961, a
trajetória dos teatros de Arena e de Equipe, a epopéia de quatro anarquistas
que assaltaram uma casa de câmbio em 1911 deixando a provinciana capital em
polvorosa e muitos outros episódios, instituições e personagens.
Para marcar o Dia Mundial do
Livro, 23 de abril, o Brasil de Fato RS conversa com Rafael Guimaraens. Na
pauta, o duplo ofício de escritor e editor, o baixo índice de leitura nacional,
a ascensão dos e-books, a extinção das políticas de apoio ao livro, a
privatização acelerada dos espaços públicos de Porto Alegre, o apagamento
seletivo da memória da cidade e os ataques à Cultura no país.
Brasil de Fato RS - Que papel tem o livro na sua vida?
Rafael Guimaraens - Cresci num quarto com uma estante de livros que
ocupava toda a parede, que pertenceram ao meu avô, o poeta Eduardo Guimaraens,
e ao meu pai, jornalista e intelectual. Com tantos livros, aprendi a ler
sozinho, aos quatro anos. Desde então, houve época em que eu lia muito e outras
em que eu lia menos, por falta de tempo. Trabalhei como jornalista, mas só
comecei a escrever livros depois dos 40 anos. Hoje, estou sempre envolvido em
projetos literários. Termino um livro e já tenho outro em mente, e isso tem
sido a minha vida.
“Vemos os influencers produzindo conteúdos irrelevantes para milhões”
BdF RS - Na história da humanidade, o livro teve o papel de guardar
a memória e contar as histórias dos que os escreviam, mas o acesso era restrito
porque se tratavam de manuscritos. Com o advento da imprensa houve uma
democratização da leitura?
Rafael Guimaraens – O livro é um fabricante de memória, assim como
os jornais. A questão da efetiva democratização da informação, nos dois casos,
é mais complicada. Os livros ainda são restritos e os jornais, no caso do
Brasil, são vinculados a grupos com interesses econômicos e políticos bastante
específicos. Muitas vezes, misturam a informação jornalística, que é de
interesse público, com os interesses do proprietário. Talvez por isso estejam
perdendo leitores
para as redes sociais, o que é
preocupante. Vemos os tais influencers, muitos sem qualquer preparo, produzindo
para milhões de pessoas conteúdos irrelevantes, que muitas vezes reforçam
preconceitos, ou atuam na área da fofoca e do culto a celebridades fabricadas
pelos escritórios de gestão de imagem.
BdF RS - Como define a tarefa de editar livros em um país que não
lê?
Rafael Guimaraens – Um desafio enorme. Estamos sempre atentos ao
segundo “L”, o da Leitura, ou seja, o acesso ao livro como direito de
cidadania. Participamos de feira, realizamos doações a bibliotecas
comunitárias, promovemos ações de contação de histórias e, para cada livro
lançado, realizamos eventos abertos sobre o tema tratado. Também procuramos
manter uma política de preços mais acessíveis, mesmo que isso signifique
diminuição da nossa margem. E, como editora, nos envolvemos em ações promovidas
por entidades da área e frentes parlamentares em defesa do livro.
“No
Brasil, 30% da população nunca comprou um livro na vida”
BdF RS - De acordo com a publicação Retratos da Leitura no Brasil,
52% (ou 100,1 milhões de pessoas) dos brasileiros, dedica-se à leitura, sendo a
bíblia e jornais os mais lidos. A que se deve esse percentual aquém do ideal?
Rafael Guimaraens – É baixíssimo. Por exemplo, os franceses leem 21
livros por ano, cinco vezes mais do que os brasileiros. No Brasil, 44% da
população não lê e 30% nunca comprou um livro na vida. E o pior: o país vem
perdendo leitores a cada nova pesquisa.
O estímulo à leitura só pode ser
feito através de políticas consistentes de acesso, redução do preço de capa,
estímulo a programas de leitura nas escolas e comunidades, incentivo a
bibliotecas, promoção de eventos. Essa é uma tarefa da sociedade e do poder
público, que, obviamente, não será assumida pelo atual Governo. Não vamos
esquecer as palavras do atual mandatário a respeito dos livros didáticos: “Um
montão de amontoado de muita coisa escrita”.
“Parece que a cidade perdeu sua alma”
BdF RS - A pesquisa aponta também Porto Alegre como a 14ª capital
no quesito leitura, mesmo abrigando a maior feira a céu aberto da América
Latina. A que se atribui isso?
Rafael Guimaraens – É um dos
efeitos do processo de apagamento da memória do período áureo que a cidade
vivenciou durante a década de 1990 e início dos anos 2000, quando Porto Alegre
chamava a atenção do mundo por soluções democráticas originais que combinavam
participação popular com maior qualidade de vida, com ênfase na Cultura.
Para os interesses econômicos que
passaram a mandar na cidade, era necessário desmobilizar a cidadania, através
de um lento e proposital esvaziamento dos processos de participação popular, o
sucateamento dos órgãos de defesa do meio ambiente e a extinção de políticas
culturais de apoio aos artistas e democratização da Cultura – cito, como
exemplo o fim do Fumproarte (Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e
Cultural).
Fico com a impressão de que a
cidade foi anestesiada por uma sucessão de ações desmobilizadoras das
administrações seguintes, que, embora de partidos diferentes, seguiram e seguem
a mesma política. Parece que a cidade perdeu sua alma. Aquela cidadania viva,
atuante e participativa tornou-se desanimada e conformista. Evidentemente que
há bolsões de resistência, especialmente pelo trabalho dos artistas, dos
lutadores sociais, e a transformação da cidade, na minha opinião, passará por
eles.
“Estamos vendo coisas que nem a
mente mais tresloucada poderia imaginar”
BdF RS - "Quando ouço
alguém falar em cultura, puxo o meu revólver". A frase atribuída tanto a
Himmler quanto a Goebbels, ministros de Hitler, ganhou uma atualização
inesperada com a decisão da Secretaria da Cultura de Bolsonaro de recomendar o
uso da Lei Rouanet para incentivar a adoção de armas pela população como acaba
de ser denunciado. Qual a sua opinião enquanto escritor e editor?
Rafael Guimaraens – “Abaixo a inteligência, viva la muerte!”,
diziam os fascistas espanhóis. Essa proposta é uma caricatura bizarra e
indecente deste governo, a Cultura instrumentalizada não para o prazer e o
esclarecimento da cidadania, mas para estimular a indústria da morte. Estamos
vendo coisas que nem a mente mais fértil e tresloucada poderia imaginar. Me
parece que na reta final, Bolsonaro toma medidas ou faz acenos para, mesmo que
não ganhe a eleição – e não ganhará -, consolidar o bolsonarismo como força
política. Este será seu único e indesejável legado para a História do Brasil.
BdF RS - Como foi ser escritor nesses dois anos de pandemia?
Rafael Guimaraens – Meus livros
têm o perfil de construção da memória. Assim, no meu caso, além da revolta,
como cidadão, por assistir, impotente, ao extermínio de milhares de cidadãos
pela covid somada à irresponsabilidade criminosa do governo, a pandemia dificultou
o acesso aos locais de pesquisa.
BdF RS – Qual o papel do livro em sua vida? Fale também sobre a sua
parceria com a Clô Barcellos na editora Libretos.
Rafael Guimaraens - A Libretos foi criada há pouco mais de 20 anos
e se mantém no mercado como uma editora reconhecida por seu catálogo de obras
relevantes. Ao longo deste tempo, busca se aperfeiçoar, principalmente por
iniciativa da Clô, que está sempre ligada nas questões do mercado editorial.
Não editamos todos os livros que gostaríamos, mas todos os que editamos nos
orgulham. A Clô dirige a Libretos e é responsável pelo design de quase todos os
livros que publicamos neste período – e já são mais de duzentos. Além disso, me
garante todas as condições para que eu possa trabalhar com tranquilidade.
“Uma
assinatura de streaming custa metade do preço de um livro”
BdF RS - Neste século, com as novas mídias, o papel do livro
continua o mesmo?
Rafael Guimaraens – O papel do livro é o mesmo: uma fonte de prazer
que provoca a reflexão e estimula a imaginação de forma mais completa do que
outras formas de expressão artística. Em relação às outras mídias, bem, e-book
é livro. Em outro formato, mas é livro. Sua evolução, de início, foi mais lenta
do que o anunciado, mas cresceu muito durante a pandemia. Hoje, vende-se um
e-book a cada 42 livros no Brasil, mas três anos atrás a relação era um e-book
para cada 95 livros físicos vendidos.
Os leitores jovens, em geral,
estão aderindo ao livro digital, portanto é natural que essa relação se torne
equilibrada. Além disso, o livro físico enfrenta um momento delicado. Os custos
gráficos aumentam em patamares superiores à inflação. No caso do papel, estão
vinculados ao dólar – e essa é uma vantagem dos digitais. O preço de capa do
livro físico não consegue acompanhar os custos, pois as vendas diminuiriam.
Tivemos um momento grandioso em 2005, com a Lei do Livro que desonerou o IOF
(12%) da cadeia produtiva do livro e provocou um aumento excepcional no número
de obras editadas e nas vendas de livros. Essa iniciativa do Governo Lula era
complementada com uma série de iniciativas de estímulo à cadeia dos três “L”s
(livro-economia, leitura-direito de cidadania, literatura-estímulo aos
escritores).
Em relação a outras mídias de
entretenimento, há uma relação desigual. Por exemplo, a mensalidade de uma
assinatura de streaming, em muitos casos, é a metade do preço de um livro. Em
outros países com mais tradição, o livro sobrevive com vigor. No Brasil, sem
uma ação governamental mais consistente, o problema do livro irá se agravar.
“A
paisagem da cidade vem sendo violentada por uma enxurrada de torres e espigões”
BdF RS - Seus livros trazem como ambiente a cidade de Porto Alegre.
A cidade está passando por transformações, com a orla sendo renovada, a
Redenção ganhando um espaço gourmet, o centro cultural do Gasômetro abandonado,
o anúncio da demolição do anfiteatro Por do Sol, o encaminhamento das
privatizações do DMAE e da Carris. Como vê este momento em que os projetos da
cidade em andamento são aqueles que envolvem a iniciativa privada?
Rafael Guimaraens - Porto Alegre, na minha opinião e na de muita
gente, está sendo descaracterizada de forma abrupta e acelerada. A paisagem da
cidade vem sendo violentada por uma enxurrada de torres e espigões que põem
abaixo o casario tradicional da cidade e sequestram da população as paisagens
mais nobres, deixando os graves problemas da cidade à sua sombra.
Aos exemplos mencionados na
pergunta, acrescento a situação do Cais do Porto, a área mais importante da
cidade do ponto de vista histórico, fechado há mais de dez anos, com seus
armazéns abandonados pelo descaso e sendo corroídos pela ferrugem. Este é o
resultado de uma privatização irresponsável na qual o poder público cedeu a
área, não se sabe em troca de quê, para a instalação de torres e de um shopping
center no local. O projeto fracassou e a carta de concessão do cais tornou-se
uma espécie de moeda, passando de mão em mão para grupos cada vez mais
desqualificados e sem compromisso com o patrimônio histórico. A prometida
revitalização transformou o Cais em escombros. O governo estadual foi obrigado
a retomar a área, a contragosto, mas não adotou nenhuma iniciativa no sentido
de recuperá-la. O Cais Embarcadero, instalado entre o Cais e a Usina é uma
espécie de maquiagem para esconder a colossal incompetência para enfrentar o
problema.
Qual a cidade do mundo que
permitiria que seu cartão postal, um de seus espaços mais importantes, fosse
tratado desta forma? O movimento Cais Cultural Já é uma iniciativa importante
no sentido forçar a abertura os portões e destinar a área para atividades
artísticas e da economia solidária, o que, na minha opinião, é uma solução
natural e inteligente.
“ Hoje, não se proíbe a impressão, mas se extingue políticas de apoio
ao livro”
BdF RS - O Brasil tem uma história de proibição e da impressão e da
manutenção do analfabetismo como política de governo durante a maior parte de
sua história. O que representa isso na indústria do livro?
Rafael Guimaraens – Manter o povo na ignorância é o recurso mais
óbvio utilizado pelos dominadores. Hoje, não se proíbe a impressão, mas se
extingue políticas de apoio ao livro, como, por exemplo, o fim ou a redução das
compras de livros pelo governo, que garantiam o acesso dos leitores e devem
fôlego às editoras. Aliás, a extinção do Ministério da Cultura – ou sua
transformação em secretaria no âmbito do Ministério do Turismo - demonstra o enorme receio dos governos déspotas
em relação à potência da Cultura como ferramenta para o esclarecimento das
massas.
BdF RS – O que está lendo no momento?
Rafael Guimaraens – Estou lendo Quatorze camelos para o Ceará, do
jornalista Delmo Moreira, e recomendo com muito entusiasmo.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno
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