Manto de sigilo imposto pelas
Forças Armadas sobre o extermínio da Guerrilha do Araguaia permanece até hoje,
50 anos depois.
Laura Petit da Silva perdeu três
irmãos na ditadura militar. Lúcio, Jaime e Maria Lúcia eram militantes do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, em 1970, juntaram-se ao núcleo da luta
armada que ficou conhecido como a Guerrilha do Araguaia, no Norte do país.
Formado por cerca de 70 combatentes, o grupo foi dizimado pelos militares, que
jamais informaram o destino dos mortos. Os irmãos Petit eram considerados
desaparecidos até que, há 25 anos, uma reportagem do jornal O Globo revelou a
foto do corpo de Maria Lúcia com um saco na cabeça.
“Nós sabíamos que ela tinha sido
executada numa emboscada em junho de 1972, porque uma pessoa próxima nos contou
seis meses depois. Mas não sabíamos que o Exército tinha anotações e
fotografias da minha irmã morta. Eles assassinaram Maria Lúcia e esconderam o
corpo”, desabafa Laura, que luta para encontrar as ossadas de Jaime e Lúcio. “É
lamentável nosso país ter tanto desprezo pelos direitos humanos e continuar
torturando as famílias dos mortos na ditadura. Vivemos um luto sem fim, sem
poder sepultar nossos parentes.”
O manto de sigilo imposto pelas
Forças Armadas sobre o extermínio da Guerrilha do Araguaia permanece até hoje.
Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil a
investigar a operação do Exército que, entre 1972 e 1975, erradicou o
movimento. A sentença determinou que o Estado deveria esclarecer as
responsabilidades e aplicar as sanções pela “detenção arbitrária, tortura e
desaparecimento forçado de 70 pessoas”. Mas muito pouco foi feito.
Dados mais relevantes foram revelados
pelo trabalho extraoficial de jornalistas, parentes de mortos, pesquisadores ou
mesmo de militares da reserva decididos a contar o horror do qual foram
cúmplices. Ainda assim, quase 50 anos após campanha do Exército no Araguaia,
apenas duas ossadas de combatentes mortos descobertas na região foram
identificadas.
Trata-se de um dos capítulos mais
violentos da ditadura militar. Oriundos de diferentes partes do Brasil, os
militantes do PCdoB começaram a chegar, no fim dos anos 60, à região conhecida
como Bico do Papagaio, entre os estados do Pará, Maranhão e Goiás, por onde
passa o Rio Araguaia. Habitado por famílias de lavradores que viviam na
miséria, trabalhando em fazendas de latifundiários, o local era considerado
ideal para se iniciar uma revolução contra o governo militar. Os guerrilheiros,
na maioria ex-estudantes universitários na casa dos 20 anos de idade,
instalaram-se abrindo pequenos estabelecimentos, dando aulas para analfabetos,
fazendo atendimentos médicos e exercendo diversas outras atividades.
Durante anos, os “paulistas”,
como eram chamados pelos locais, criaram vínculos com os moradores, enquanto
realizavam treinamentos na selva e faziam propaganda política em pequenas
reuniões. Estavam espalhados por uma área de 6.500 quilômetros quadrados,
divididos em três destacamentos (A, B e C). Mas, pouco numerosos e com
armamento tímido, eles ainda se preparavam para sua revolução quando foram
descobertos, no início de 1972, após a prisão e tortura de um guerrilheiro que
abandonara a mobilização meses antes e com
as informações fornecidas por
outra militante, Lúcia Regina Martins, mulher de Lúcio Petit, que também havia
deixado a selva, grávida e com problemas de saúde.
Em abril de 1972, há 50 anos, as
primeiras tropas chegaram ao Araguaia para combater a guerrilha, perto das
cidades de Xambioá, no Norte do território que é hoje o Tocantins, e Marabá, no
Pará. Mas, como os militantes estavam já bastante treinados e ligados à
comunidade, e como os soldados eram inexperientes naquele tipo de batalha,
foram necessárias três grandes operações envolvendo milhares de homens, durante
dois anos, até que a guerrilha fosse derrotada. Na campanha, o Exército cooptou
camponeses por meio de recompensas e represálias.
Foram usados armamentos pesados,
como bombas incendiárias lançadas em locais da selva onde investigações
apontaram acampamentos revolucionários. Prisioneiros foram torturados e mortos.
Houve até mesmo decapitações. Entre os militares, estima-se em dez o número de
mortos durante confrontos.
Em 1975, as Forças Armadas
começaram uma operação de ocultação dos fatos, sob ordens do então presidente,
Ernesto Geisel. Mais de 60 guerrilheiros haviam sido mortos, a maioria deles
após a prisão. Seus corpos foram retirados das covas rasas e incinerados, assim
como farta documentação. O trabalho foi feito de forma tão meticulosa que, até
hoje, apenas duas ossadas foram descobertas e identificadas. Cerca de 50
guerrilheiros mortos ainda são considerados “desaparecidos políticos”.
“A campanha militar do Araguaia rompeu
até mesmo com o verniz de legalidade que a ditadura criou para promover sua
repressão”, diz a historiadora Maria Cecília Vieira de Carvalho, que esteve na
região acompanhando um grupo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
em 2012, e, mais tarde, elaborou a dissertação de mestrado “Não façam
prisioneiros! O combate e o extermínio da Guerrilha do Araguaia”, da UFMG. “Por
isso, o Exército mantém esse silêncio até hoje.”
Mais de 20 anos depois do
extermínio da guerrilha, um militar decidiu que aqueles eventos não podiam mais
ficar escondidos. Sem se identificar publicamente, ele entregou um caixote
cheio de papéis ao jornal O Globo. Durante meses, uma equipe de repórteres se
debruçou sobre as informações, dividindo-se em tarefas. No dia 28 de abril de
1996, o diário começou a publicar a série de reportagens que trouxe, pela
primeira vez, documentos do Exército sobre os mortos do Araguaia. Eram
fotografias, fichas com dados pessoais e anotações feitas a mão por membros das
Forças Armadas. O conteúdo provava que muitos dos “desaparecidos” haviam sido
presos, antes de “sumirem” quando estavam sob custódia do Estado.
“Até hoje, há muita falta de
informação sobre a Guerrilha do Araguaia, mas, na época, era um assunto ainda
mais obscuro. A reportagem revelou documentos do próprio Exército sobre o que
aconteceu naquele episódio”, conta a jornalista Adriana Barsotti, que assinou a
série de reportagens com Amauri Ribeiro Jr., Aziz Filho, Cid Benjamin e
Consuelo Dieguez. “Peguei as fotos e fui batendo de casa em casa para falar com
as famílias de desaparecidos e ver se eles identificavam seus parentes nas
imagens.”
O trabalho, que ganhou o Prêmio
Esso de Reportagem de 1996, contou, entre outras, a história de Maria Lúcia
Petit, morta com um tiro no peito logo no início da campanha militar no
Araguaia, em junho de 1972. Em 1991, parentes de desaparecidos começaram
escavações no cemitério de Xambioá, onde uma ossada foi descoberta e enviada à
Unicamp, que já trabalhava na identificação de restos mortais descobertos na
Vala de Perus, em São Paulo. Entretanto, mesmo com os vários pedidos de Lúcia
Petit, irmã da guerrilheira, a identificação da ossada só foi realizada após a
publicação da reportagem. A perícia confirmou que os restos mortais eram de
Maria Lúcia, e a família pôde, então, sepultar a ex-professora primária, num
cemitério em Bauru, onde morava a sua mãe.
“Tudo o que joga luz sobre aquele
período de trevas do País ganha muita importância, porque ajuda a construir
partes da História que os militares tentaram esconder”, comenta o jornalista
Aziz Filho. “A reportagem contou as histórias de pessoas que tinham morrido
combatendo a ditadura. Eram jovens que deixaram suas vidas nas cidades em
função de um ideal.”
Desde a redemocratização,
diversos trabalhos tiraram do breu tudo o que se tem ciência hoje sobre o
Araguaia, transpondo barreiras impostas até hoje pelas Forças Armadas. Em
alguns casos, foram os próprios militares que decidiram revelar o que
sabiam. Em 1993, o então coronel da
reserva Pedro Corrêa dos Santos Cabral lançou o livro Xambioá – Guerrilha no
Araguaia, no qual ele relata como pilotou um helicóptero com a missão de
ocultar corpos de combatentes mortos.
Em 2019, o também jornalista
Eduardo Reina lançou Cativeiro sem Fim, tirando do silêncio o drama de pessoas
que eram crianças quando foram sequestradas por militares durante a campanha no
Norte do Brasil. São filhos e filhas de camponeses e guerrilheiros arrancados
de suas famílias e criados por pessoas ligadas às Forças Armadas, em cidades
distantes do Araguaia.
“No livro, conto sobre uma ação
do Ministério Público Federal (MPF) que chegou a flagrar integrantes do
Exército indo à casa de moradores do Araguaia, recentemente, para impedi-los de
revelar informações sobre os mortos nos anos 70”, diz Reina, que ficou 20 dias
na região do Araguaia, pesquisando para o livro. “Senti que ainda há muito
receio das pessoas de falar sobre aquela época, mesmo depois de quase 50 anos.
Eles ainda temem represálias dos militares.”
Com informações do Blog
do Acervo
Via – Portal Vermelho
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