Possibilidade de que uma coalizão de esquerda alcance pela
primeira vez o poder na Colômbia fez soar todos os alarmes nas fileiras da
direita e dos grandes poderes.
Por Roberto Montoya
No Portal Vermelho
Dura semana para o Uribismo. À tensa e violenta situação que
a Colômbia vive antes do primeiro turno das eleições presidenciais do próximo
29 de maio, na qual o candidato informal do Uribismo e do resto da direita,
Federico Gutiérrez, competirá contra o líder da esquerda, Gustavo Petro, se
somaram nos últimos dias duros reveses para a direita.
O ex-presidente Álvaro Uribe, onipresente na política
colombiana durante os últimos 20 anos, mentor do atual presidente Iván Duque e
do candidato Federico Gutiérrez, deve ir a julgamento por suposta compra de
testemunhas e fraude processual. Uribe não contava com essa decisão, dando como
garantido que a juíza Carmen Ortiz confirmaria o pedido do Ministério Público
para arquivar o processo aberto em 2018 pelo Supremo Tribunal de Justiça,
processo que noticiamos na altura nestas mesmas páginas.
Tanto em 2018 quanto em 2020 a Corte entendeu que havia testemunhos
e provas contundentes de que três ex-paramilitares de extrema direita presos
haviam sido subornados dentro da prisão por enviados de Uribe, para que
testemunhassem contra o senador de esquerda Iván Cepeda. Este se tornou o
principal flagelo do Uribismo.
Cepeda havia apresentado uma acusação sólida, com
testemunhos e provas documentais, sobre a coexistência de Uribe e seu regime
com o narcoparamilitarismo de extrema-direita que devastou a Colômbia durante
anos, causando a morte de milhares de pessoas. Uribe, esse homem premiado e
condecorado tantas vezes na Espanha, agora está judicialmente encurralado, e
embora seus advogados ainda tentem apelar perante a Câmara Penal do Tribunal
Superior de Bogotá, dificilmente conseguirão uma decisão antes das eleições de
29 de maio.
Para piorar a situação, o candidato da esquerda, Gustavo
Petro, líder do Pacto Histórico, tem realizado comícios de sua campanha
eleitoral às portas de alguns dos grandes latifúndios de Uribe na região de
Córdoba, apontando as propriedades como exemplo de terras improdutivas dos
latifundiários colombianos que ele propõe expropriar. O líder do Pacto
Histórico, que se apresenta como um defensor da soberania alimentar, sustenta
que enquanto o país importa muitos dos alimentos que consome, há na Colômbia
milhões de hectares férteis de terras que não são trabalhadas, nas mãos de
latifundiários como Uribe.
Membro do movimento guerrilheiro M19 nos anos 70, Petro se
tornou um pesadelo para o Uribismo e as forças armadas. Acompanhado da poderosa
ativista da causa ambiental e feminista Francia Márquez, os dois aparecem hoje
subindo nas pesquisas, enquanto Guetiérrez estagna.
Márquez, uma mulher negra que obteve grande apoio nas
primárias, é quem mais faz campanha contra a exploração de petróleo, propondo
um plano para reduzir progressivamente sua produção e promover energias
renováveis. Ela também traz à campanha uma postura feminista contundente que
compensa certa ambiguidade que Petro mantém sobre o tema.
A tensão aumenta à medida que a data das eleições se
aproxima. O próprio comandante do Exército, o general Zapateiro, entrou na
polêmica eleitoral, atacando Petro depois do candidato denunciar que vários
altos oficiais militares estão na folha de pagamento do Clã do Golfo, um dos
mais poderosos grupos de narcotráfico do país.
Longe de repreender o general por fazer declarações
políticas que violam a Constituição, o presidente Iván Duque, violando por sua
vez a Lei Eleitoral, saiu em sua defesa, reivindicando a honra e o papel das
forças armadas na luta contra os narcotraficantes e atacando o candidato de
esquerda.
O Uribismo, temeroso pelo avanço nas pesquisas da
candidatura Petro-Márquez, tenta, numa corrida contra o tempo, avançar no
Congresso uma reforma da lei de transferência de poder para impedi-los de
acessar informações sigilosas de segurança nacional caso cheguem ao poder.
Gustavo Petro sabe que há muito tempo há um preço por sua
cabeça, e nestes dias sua equipe de campanha o convenceu a cancelar alguns dos
atos de sua campanha frente a avisos credíveis da polícia de que se preparavam
atentados contra sua vida.
O Centro Democrático, partido do outrora poderoso Álvaro
Uribe e seu discípulo, o presidente Duque, não apresentou um candidato próprio
nestas eleições após sua demolidora derrota nas eleições legislativas de março
passado, e deixou a decisão final nas mãos de suas bases, embora ninguém duvide
que Gutiérrez, à frente da coalizão direitista Coalizão Equipo por Colombia,
seja seu candidato, seu “cavalo de Troia. Muitos Uribistas já indicaram sua
intenção de votar por ele.
Gutiérrez, que militou nas fileiras do Uribismo e que ao ser
eleito prefeito de Medellín dedicou seu triunfo a Uribe, necessita desses
votos, mas ao mesmo tempo tenta não parecer uma marionete, como foi Duque. O
Uribismo afunda cada dia mais.
Dias atrás, e cinco anos depois da assinatura do acordo de
paz entre a guerrilha das Farc e o governo de Juan Manuel Santos, que tanto
Uribe quanto Duque rechaçaram e boicotaram, a Colômbia escutou pela primeira
vez o testemunho de 11 militares, dentre eles um general, dois coronéis e dois
tenente-coronéis, que reconheceram que assassinaram 120 camponeses para que
passassem como guerrilheiros mortos em combate.
Os crimes, conhecidos como falsos positivos, foram cometidos
neste caso em Catacumbo, uma região que faz fronteira com a Venezuela, no
departamento Norte de Santander, mas outras zonas da Colômbia, como Meta,
Casanare, Antioquía e Huila também viveram essa guerra suja do governo.
Em troca dos assassinatos recebiam promoções, recompensas
econômicas e outros benefícios. Com o fim de melhorar as estatísticas oficiais
do êxito militar, o governo Álvaro Uribe (2002-2010) aprovou em 2005 uma
diretiva militar interna para incentivar as detenções ou mortes de
guerrilheiros. Estes 11 militares concretamente estão envolvidos no Caso 03, de
assassinatos e desaparecimentos forçados apresentados como baixas em combate
por agentes do Estado, acusados de crimes de guerra e crimes de lesa-humanidade
entre janeiro de 2007 e 2008 pelo tribunal da Jurisdição Especial para a Paz
(JEP).
O tribunal os convocou no fim de março deste ano para
audiências onde seus testemunhos se intercalaram com os dos familiares de suas
vítimas. Néstor Gutiérrez, um suboficial acusado de vários dos assassinatos de
Catacumbo, reconheceu ante os familiares de Javier Peñuela: “era um camponês,
sim, digo isso em público hoje e aqui, e como todos os seus familiares era um
homem de bem. Seu único pecado foi descer à cidade para arrancar um dente.”
Lá foi detido, levado a outra região onde foi executado;
tiraram suas roupas, as queimaram e puseram nele uniformes da guerrilha.
“Assassinamos pessoas inocentes, camponeses”. Um após o outro, foram ouvidos os
depoimentos dos parentes dos assassinados e depois os de seus assassinos.
A JEP tem milhares destes crimes registrados, mais de 6,4
mil falsos positivos, uma prática que teve maior intensidade durante os anos em
que Juan Manuel Santos era ministro da Defesa de Uribe, entre 2006 e 2009.
Santos, que chegaria à presidência em 2010 pelas mãos de Uribe, de quem depois
se afastou, foi nomeado Prêmio Nobel da Paz por promover os Acordos de Paz de
2016 com a guerrilha.
Em junho de 2021, ele pediu perdão pela primeira vez quando
questionado pela Comissão da Verdade por esses eventos: “Isso nunca deveria ter
acontecido. Reconheço e peço desculpas a todas as mães e a todas as suas
famílias, vítimas deste horror, do fundo da minha alma.”
Santos disse que a princípio não acreditou nas terríveis
denúncias que os familiares das vítimas faziam sobre os crimes cometidos pelo
Exército contra civis inocentes, mas as organizações de direitos humanos
consideraram as palavras do ex-presidente pouco críveis. Consideram que era
impossível, sendo ministro da Defesa e conhecendo a longa história de crimes
cometidos pelas forças armadas colombianas, e apontam que sequer ordenou uma
investigação sobre tantas denúncias similares, até que seu mandato se
aproximasse do fim.
Até o momento Santos conseguiu não ser investigado pela
Justiça e, na Espanha e em outros países, tem mantido uma imagem de férreo
defensor dos direitos humanos. Mas a sinistra prática dos “falsos positivos”
parece não ter ficado para trás.
A última matança protagonizada pelo Exército de Iván Duque
ocorreu no último 28 de março, na zona fronteiriça entre Colômbia e Equador, na
comunidade de Alto Remanso, de cerca de 250 habitantes, totalmente abandonada
pelo Estado, onde habitualmente se movem dois grupos dissidentes das Farc que
se negaram a entregar suas armas. São os chamados Comandos Bolivarianos de
Fronteira (CBF) e a Frente Primeira Carolina Ramírez, que se enfrentam pelo
controle do território.
Na comunidade se celebrava o terceiro dia de um bazar
comunitário, com festa, baile, comidas, bebidas, futebol e rinha de galos, no
qual participavam dezenas de pessoas, inclusive de outras comunidades, quando
forças militares mascaradas e vestidas de petro, emboscadas ao redor da região,
começaram a disparar indiscriminadamente. Ao menos 11 pessoas foram mortas,
entre elas mulheres e um adolescente, além do governador indígena da região,
Pablo Panduro Coquinche, o presidente da Junta de Ação Comunal (JAC), Divier
Hernández e sua esposa, Ana María Sarriz, que estava grávida, além do
ex-guerrilheiro desmobilizado Jhon Jairo Silva Mutumbajoy.
Tanto o comandante do Exército, Zapateiro, como o presidente
Duque, apresentaram a “operação antiterrorista” como um grande feito militar,
assegurando que na festa havia guerrilheiros, que oito deles foram mortos e que
os outros três morreram por ter disparado contra a ação militar. A versão de
toda a comunidade de Alto Remanso rechaça totalmente essa versão, e acusa os militares
de terem disparado contra civis crendo que havia combatentes das dissidências
das FARC nas festas.
Membro de organizações camponesas como a Moviccaap,
jornalistas e peritos do Ministério Público que chegaram várias horas depois ao
local descobriram que os cadáveres foram manipulados, trocados de lugar, e que
alguns corpos com grandes manchas de sangue foram colocados em coletes à prova
de balas grosseiramente imaculados, com armas longas deixadas ao lado deles.
David Melo Cruz, advogado das vítimas e membro da Fundação
Liderança e Paz de Putumayo, suspeita que o Exército confundiu um dos
participantes da festa com Carlos Emilio Loaiza, codinome Bruno, líder
guerrilheiro que buscavam capturar, e que por isso começaram a disparar.
O presidente Duque repetiu rapidamente na sua conta de
Twitter a versão do ministério da Defesa: “foram neutralizados onze integrantes
das dissidências das Farc”. No entanto, nem o Ministério Público nem a
Defensoria do Povo aceitam essa versão, e uma investigação que ameaça
converter-se em um escândalo de grandes proporções às portas das eleições foi
iniciada.
O candidato presidencial da esquerda, Petro, contestou o
tuíte do presidente: “não é neutralização, senhor presidente Duque, é
assassinato. Não eram onze integrantes das Farc, eram camponeses e indígenas
civis desarmados, inclusive crianças. É um crime de guerra de seu governo. Em
meu governo vamos pôr fim definitivamente aos ‘falsos positivos’”.
Por sua vez, Sergio Fajardo, ex-prefeito de Medellín e
candidato centrista da Coalizão Centro Esperanza, disse que “um exército não
pode matar civis, roubar e manipular corpos; um governo não pode apresentar uma
ação desproporcional e vil como uma operação bem-sucedida”. Se ele não for para
o segundo turno das eleições presidenciais, é dado como certo que ele pedirá o
voto de seus seguidores para Petro, enquanto o Partido Liberal do ex-presidente
César Gaviria anunciou já oficialmente que apoiará a candidatura de Federico
Gutiérrez, o candidato direitista da Coalizão Equipo por Colombia.
Também Ingrid Betancourt, ex-refém das FARC e candidata do
partido Oxígeno Verde, que conta com somente 1,1% das intenções de voto,
declarou que “um falso positivo é a violação dos direitos humanos mais atroz da
história recente, não pode haver impunidade”, mas não esclareceu a que
candidato dará seu apoio.
A tensão é máxima na Colômbia. O ministro da Defesa terá que
comparecer ao Congresso para explicar a matança de Alto Remanso, enquanto se
sucedem as declarações de militares hostis a Petro e crescem os rumores de
golpe de Estado.
Gustavo Petro se viu obrigado, no último 2 de maio, a
suspender sua visita aos departamentos do Eixo Cafeeiro colombiano depois de
saber da existência de um plano para matá-lo. Segundo a equipe de segurança do
líder da coalizão Pacto Histórico, a informação foi recebida de primeira mão de
fontes na zona, e indicava que o grupo de narcotraficantes e sicários La
Cordillera preparava o atentado.
O La Cordillera é um poderoso grupo que opera nos
departamentos de Quindío, Risaralda e Caldas, e exerce controle sobre boa parte
das autoridades civis e políticas do Eixo Cafeeiro, e no qual está assegurada a
participação inclusive de agentes da Seção de Investigação Criminal (Sijín).
A possibilidade de que uma coalizão de esquerda alcance pela
primeira vez o poder na Colômbia, um país assolado pelo narcotráfico e a
violência política há décadas, fez soar todos os alarmes nas fileiras da
direita e dos grandes poderes desse país, e também para além de suas
fronteiras.
Fonte: El Salto | Tradução: Pedro Marin (Revista Opera)
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