A tragédia grega é uma
instituição político-social de cunho democrático – uma reflexão que a cidade
faz sobre o nascimento da democracia
Por Marilena Chauí
Entre os séculos 5 e 4 antes de
Cristo, a Grécia encena suas maiores tragédias. Como gênero teatral, a tragédia
é encenada em dois espaços: o palco (onde ficam os atores profissionais que,
falando em prosa, representam deuses, heróis e heroínas); e o coro (onde ficam
o grupo de pessoas que não são atores profissionais e que, cantando em verso,
narram e comentam o que se passa no palco).
A palavra encontra-se, assim,
dividida – a prosa no palco e o verso no coro. O que significa essa divisão da
palavra? Que a tragédia é uma instituição político-social de cunho democrático
– uma reflexão que a cidade faz sobre o nascimento da democracia. No palco,
estão deuses e personagens do mundo aristocrático – reis, rainhas, príncipes e
suas famílias, definidos pelos valores da aristocracia, isto é, pela coragem na
guerra, pela beleza física ou pelos laços de sangue ou de família.
Mas o coro é um colégio de
cidadãos, que, comentando as ações que transcorrem no palco, avalia, julga e
dialoga com as personagens aristocráticas. Dessa maneira, a divisão cênica da
palavra visa marcar a diferença entre o passado aristocrático (que está no
palco) e o presente democrático (que está no coro).
Que ação se desenvolve no palco?
Uma sequência de crimes sangrentos impostos pela lei da aristocracia, que exige
que um crime sangrento no interior da família seja vingado por outro crime
igualmente sangrento no seu interior. O ponto inicial da tragédia é sempre um
parricídio (como no caso de Édipo), um fratricídio (como no caso de Antígona),
um infanticídio (como no caso de Ifigênia), um adultério seguido de assassinato
(como no caso de Medeia) e assim por diante.
Esse crime inicial narra a
exigência imposta pelos deuses de que ele seja vingado por um outro crime tão
sangrento quanto ele. Ora, esse novo crime, por sua vez, exige reparação por
meio de um novo crime sangrento. A sequência de crimes sangrentos no interior
da família é interminável, revelando que a lei de uma sociedade aristocrática
pertence a um espaço privado, a família, e se realiza como vingança sem fim.
Uma das funções políticas da tragédia é mostrar que essa lei precisa – e pode –
ter um fim.
De fato, as tragédias costumam
ser escritas formando trilogias. Na terceira peça, os deuses – que desde a
primeira determinaram a obrigatoriedade da vingança – se reúnem e discutem se,
afinal, devem continuar impondo essa lei aos mortais ou se cabe aos mortais
julgar os próprios mortais, criando suas leis e seus tribunais.
Os deuses decidem que os mortais
julguem os mortais, passando do espaço privado da família para o espaço público
da cidade. Assim, por exemplo, na terceira peça da trilogia Oréstia, de
Ésquilo, a deusa Atena recomenda aos atenienses, seu povo, que assumam a
responsabilidade pública pela Justiça:
“Cidadãos de Atenas, como ireis julgar agora, pela primeira vez, um
crime sangrento, escutai a lei do vosso tribunal. Sobre esse rochedo de ares,
doravante sentar-se-á perpetuamente o tribunal, que fará ouvir o julgamento de
todo homicídio. Este rochedo é chamado de Areópago. Aqui, o deus Respeito e seu
irmão, o deus Temor, noite e dia, igualmente manterão os cidadãos longe do
crime enquanto conservarem inalteradas as leis. Não mancheis a pureza das leis
com a impureza dos estratagemas. Guardai bem e com reverência a vossa forma de
governo. Nem anarquia, nem despotismo – eis a regra que aconselho à cidade
observar com respeito.”
(Texto baseado em palestra
proferida pela autora no mini-curso “Democracia: história, formas e
possibilidades”, promovido pela Boitempo em outubro de 2019)
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