Há 110 anos nascia Antônio Gonçalves da Silva, poeta
magistral sertanejo que, na forma de Patativa, versou as verdades dos muitos
brasis de universal Nordeste. Respeitado por sua genialidade, faz menos falta
do que devia, pois sua palavra é viva.
A casa onde nasceu Patativa, na Serra de Santana, traz
relíquias da história do poeta
Foto: Melquíades Júnior
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Por Melquíades Júnior
"Vão na frente que eu vou atrás. Levando as
traia". Era o fim da meia-jornada. O agricultor brocou cedo a terra. Saiu
cedinho, quando o sol entrou. Belinha coou o café pra viagem do marido com os
filhos até o pedaço de roça. Quem vive no sertão brabo de enxada na mão não tem
tempo de sentar. A depender do destino, o chão batido vira mesa, cama e até
altar, envolto pelo roçado. Sertão só sabe quem vive. Chover é dúvida. Certeza,
só na fé. Planta sem saber.
Mas perto da hora do almoço junta tudo, todos, e vai embora.
Inês é encucada:
- Pai toda vida só vai atrás da gente, sozinho. Num quer ir
junto, diz, olhando pra trás e vendo o silêncio.
Em menos de meia-légua de pisada no chão da Serra de
Santana, Antônio, atrás, parece que voa. Tá ali, mas não tá.
No fim de tarde, todo mundo bota as cadeiras pra fora. A
calçada dá justo pro sol, que vai embora. Ele desce e os mosquitos sobem. Mas
quem vive no sertão não tem casca fina.
Encadeando palavras
Antônio convoca atenção e diz uns dizeres falados como se
estivesse cantando. Uma frase atrás da outra. Uma palavra que combina com outra
duas frases depois. Eram versos e rimas. "As corra mair linda".
Nesse tempo, o pai já soltava poesia, só não sabia de onde
vinha, mas o dia dela saber chegaria.
"Eu nasci ouvindo cantos/ Das aves de minha terra/ E
vendo os lindos encantos/ Que a mata bonita encerra/ Foi ali que fui crescendo/
Fui lendo e fui aprendendo/ No livro da Natureza/ Onde Deus é mais visível. O
coração mais sensível/ E a vida tem mais pureza".
- De onde pai tira tudo isso?
- É Deus que manda.
Foi daí que Inês percebeu: o pai andava atrás pra ter tempo
com o divino. Devia sussurrar no seu ouvido, soprando palavras de semente. No
tempo de chegar em casa, crescia e dava fruto. Essa era uma colheita certa.
Desce do céu, sobe a serra
Deus visitando onde quase ninguém vai. Um pedacinho da Serra
de Santana, prima pobre, comprida e alta de Assaré. Nunca se lembram dela, a
não ser em tempo de eleição. A vantagem, dizem os de lá, é que no outro tempo é
menos gente perturbando.
Hoje, o desassossego é outro e bom: "mei mundo de gente
vem aqui conhecer onde pai nasceu", diz Inês Batista. Pai é Antônio. E se
antes, quem quisesse saber dele, perguntava por Senhorzinho, hoje em dia é só
Patativa. Patativa do Assaré.
Se ele já tinha um tempo com Deus, sua morte foi reencontro.
Não antes de ver a fama. Primeiro, a de perto, nas andanças pelo Cariri.
Depois, bem longe.
Rodou pelas bandas do Norte, conheceu outros Nordestes. Mas
foi a radiofonia sua internet. Ouvidos eram atentos à sua passagem pela Rádio
Araripe, no Crato. José Arraes era um. Homem importante dos lados de
Pernambuco, irmão de Miguel Arraes, este que virou governador daquele Estado.
Atento às pelejas sertanejas, criou em sua gestão dois programas para o homem
do campo: Vaca na Corda, para financiar gado, e o Chapéu de Palha, pra ajudar o
agricultor na entressafra.
Pois foi Zé, irmão de Miguel, um dos grandes financiadores
ao primeiro livro do poeta: Inspiração Nordestina (1956), aos 47 anos. Dali já
corria mais longe o canto sertanejo. Luiz Gonzaga ouviu no rádio Patativa com
João Alexandre, outro artista popular. Queria comprar aquela letra e foi ter
com autor, mas o poeta não é de vender.
"Triste Partida" ganhou o mundo na voz do
"Rei do Baião". Era retrato do sertanejo retirante nordestino.
Viajantes da esperança, ainda que pobreza ambulante. No rincão seco, vai sem
querer. Fome é a precisão, Deus é o guia.
Setembro passou/ outubro e novembro/ Ja tamo em dezembro/
Meu Deus, que é de nós?.
Virou hino. Quem vê hoje, pensa que a fama lhe percorreu
toda a vida. Mal sabem que, bem dizer chamado 'velho', era um poeta popular
pouco reconhecido em suas próprias beiras. Sentava no banco da praça que dá
para a Igreja de Nossa Senhora das Dores, em frente de casa. Passava a tarde
ali, matutando o tempo (ou com o divino).
Jaqueline, filha de Araci, fez por muito tempo os
encarregados dele. Morando no lado oposto da praça, estava sempre a postos pra
acompanhar o poeta onde precisasse. Um pagamento, pegar remédio ou dar notícia
do que se passa na cidade pequena, mas cheia de histórias. Era mulher de
confiança. Serviu-lhe até casar e partir. E fazer falta.
FONTE: Caderno VERSO | DN
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/patativa-do-assare-110-anos-de-palavra-viva-1.2067055
Via - Acorda Cordel
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