Entra ano, sai ano, órgão ligado à Secretaria Estadual da
Saúde importa e envasa boa parte do que entrega ao Ministério da Saúde. Para
atrair empresariado estrangeiro, João Doria maquia situação.
Em 2017 foram registrados 124.903 acidentes com picadas de
escorpiões, uma alta de 36%. O número de mortes subiu para 143, um aumento de
19%. Em 2012, 2014 e 2015, o Butantan não produziu o soro.
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Por Cida de Oliveira, da RBA
São Paulo – Na propaganda do governador de São Paulo João
Doria (PSDB) a investidores estrangeiros, para apresentar seu programa de
privatização, o Butantan é anunciado como um instituto de "ciência e
tecnologia de qualidade mundial", que recebe investimentos de mais de US$
200 milhões e que está inserido em uma "política estadual de investimento
pesado", que corresponde a 74% do total investido no setor em todo o país.
A realidade do órgão centenário, vinculado à Secretaria
Estadual da Saúde não é bem assim. O
déficit de pesquisadores e demais profissionais de apoio, que se aprofunda com
a falta de concursos públicos e com aposentadorias, e o desinvestimento na
infraestrutura, que levou ao grande incêndio no museu de répteis em maio de
2010, são sintomas do histórico processo de sucateamento com vistas à
privatização. Aquela antiga desculpa de que o Estado não tem condições de
gerir, como tem o setor privado e com isso vai sendo entregue o patrimônio
público brasileiro.
Sem a manutenção e abandonados, laboratórios e fábricas são
reprovados em auditorias da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
As reformas exigidas para adequação às boas práticas levam anos, atrasam
pesquisas e a produção. Como resultado, boa parte das vacinas e soros vendidos
para o Ministério da Saúde é importada, envasada e rotulada.
De acordo com o Relatório Anual de Atividades 2016, o mais
recente disponibilizado pela Fundação Butantan, a entidade de direito privado
responsável pela gestão administrativa e financeira do instituto, foram
importadas naquele ano 17.216.670 doses de vacinas – contra a gripe, hepatite A, raiva e
difteria, tétano e coqueluche – para complementar a produção própria de
76.568.780. A leitura do relatório confirma depoimentos de trabalhadores e
permite afirmar que, no momento, a instituição produz apenas a vacina contra difteria
e tétano adulto (dT).
Em 2016, quando foram notificados 91.701 casos de picada de
escorpiões em todo o país, com 120 mortes, o Butantan produziu 17.560 doses de
soro antiescorpiônico. De acordo com o Ministério da Saúde, o número tem
aumentado. Em 2017 foram registradas 124.903 ocorrências, uma alta de 36%, e o
de mortes subiu para 143, um aumento de 19%. Em 2012, 2014 e 2015, o Butantan
não produziu o soro. Em 2013, foram produzidas 10.528 doses. Outros
laboratórios públicos, como o Instituto
Vital Brazil, do Rio de Janeiro, e a Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais,
também tiveram de readequar suas fábricas e laboratórios.
Os acidentes com escorpiões são mais comuns na região de
Jaú, no interior de SP, onde o Ministério Público Federal (MPF) entrou com Ação
Civil Pública em setembro passado, exigindo que a União e o Estado de São Paulo
garantam pelo menos seis doses de soro antiescorpiônico em cada um dos onze
municípios da região.
Conforme trabalhadores, o Instituto não tem investido em
pesquisas para conhecer melhor as mudança de habitats desse parente da aranha,
que tem o desmatamento – e não o calor – sua principal causa. Em dezembro, a
médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Núcleo Estratégico de Venenos e
Antivenenos do Butantan, disse à BBC que o órgão firmou parceria com a
Faculdade de Saúde Pública da USP para iniciar uma pesquisa inédita, que vai
mapear a evolução dos casos e buscar entender o comportamento da espécie Tityus
serrulatus, o escorpião amarelo, o mais comum na região Sudeste.
Abandono
A produção parcial do Butantan, devido a problemas com os
laboratórios e à má gestão administrativa e financeira, não é novidade. Desde
2015 a RBA acompanha o progressivo desmonte do órgão, que ganhou força nas
gestões de Geraldo Alckmin.
O fim da picada. Governo de São Paulo sucateia o Butantan
Ao deixar Butantan, ex-diretor critica gestão e paralisação
na produção de vacinas e soros
Apesar das fábricas praticamente paradas, direção do
Butantan comemora produção
Em 24 de fevereiro de 2017, parte dos pesquisadores do
Instituto fizeram paralisação em ato de apoio ao ex-diretor, Jorge Kalil, que
havia sido exonerado. Conforme o Blog de Herton Escobar, no Estadão, Kalil
cometeu "graves problemas de gestão na instituição e de divergências com o
comando da Fundação Butantan", incluindo o "sumiço de R$ 8 milhões em
bens materiais", conforme nota da própria Secretaria de Saúde.
Em 21 de março de 2017 – menos de um mês após o episódio –,
a RBA teve acesso, com exclusividade, a planilhas com nomes de diretores de
divisão e de funcionários duplamente remunerados e de outros que,
comprovadamente, não realizam atividade de pesquisa e que mesmo assim recebiam
bolsas irregulares.
Butantan gasta R$ 640 mil por mês com duplos salários e
bolsas irregulares
Perseguição a servidores
Apesar da saída de Kalil, muitos de seus apoiadores
continuaram próximos à gestão do Instituto e da Fundação Butantan. E alguns dos
que haviam sido afastados, retornaram. Começou então em tempo de perseguição a
servidores que nunca esconderam a insatisfação com a política de gestão para o
Instituto Butantan.
Depois de um processo administrativo anunciado em maio de
2018, pela suposta prática de criação de pássaro em cativeiro, o oficial de
pesquisa José Roberto Siqueira, 67 anos, 47 anos dedicados ao Instituto
Butantan, foi comunicado de que teria até o último dia 29 de fevereiro para
deixar a casa que ocupava na vila de
trabalhadores.
Filho de servidores do Butantan, que praticamente nasceu
ali, Siqueira foi o último a deixar a vila. Muitos colegas e ex-vizinhos não
conseguiram resistir ao assédio e pressões da gestão Kalil, que tinha entre as
metas transformar as 45 residências em laboratórios. De lá para cá, mesmo com a
saída dos moradores, cinco casas foram reformadas para dar lugar a
laboratórios.
Em setembro de 2014, a RBA flagrou obras na vila, em que a
empreiteira contratada pela gestão Kalil mantinha 24 trabalhadores, a maioria
deles oriundos de países africanos, sem registrados em carteira, com os
salários atrasados, sem uniformes, equipamentos de proteção individual e sem as
mínimas condições de conforto no trabalho. Nem refeitório. As irregularidades
foram confirmadas em diligência de auditores da Superintendência Regional do
Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). A obra acabou abandonada e o
material segue estocado nas imediações, ao lado de materiais novos, sem usos,
que enferrujam pela ação do tempo.
Como há muito Siqueira já esperava pelo pedido de entrega da
casa, tomou as providências para a mudança antes que expirasse seu prazo. Das
lembranças que ficam, só as coisas boas. "Não tenho nada contra o
Butantan. Aqui construí minha vida. E tudo o que conquistei foi recebendo o meu
salário honrado. Um único salário. E não dois".
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