Executivo queria transferir material que hoje está sob
responsabilidade da Unifesp, em São Paulo, mas argumento econômico foi
questionado pela Justiça e pela Procuradoria, além dos familiares de
desaparecidos.
Trabalhos de identificação das ossadas encontradas em vala
clandestina em Perus, em 1990, continuarão na Unifesp.
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Publicado por Vitor Nuzzi, da RBA
São Paulo –Depois de manifestar intenção, sob pretexto de
redução de gastos, de transferir de São Paulo para Brasília as ossadas da vala
clandestina de Perus, o governo recuou durante audiência de conciliação
realizada ontem (9) na sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3),
com presença de ativistas e familiares de mortos e desaparecidos políticos na
plateia. Foram quase quatro horas de reunião, com momentos ásperos e alguns
desentendimentos entre as bancadas. De um lado, representantes da União e do
outro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da prefeitura paulistana
e do Ministério Público. Representantes do Executivo negaram qualquer objetivo
de “desmonte” dos trabalhadores de identificação das ossadas.
Um receio “que não tem base”, afirmou o novo
coordenador-geral de Direitos à Memória e à Verdade, Patrick Bestetti Mallmann,
nomeado em 26 de novembro. “Parte desse ruído que tem havido nos últimos meses
é uma questão de ordem política, ideológica”, afirmou, logo no início da
audiência, apontando ainda “imprecisões” sobre notícias veiculadas na mídia e
se queixando do “teor forte” de carta encaminhada pelos familiares. Ele disse
entender as “dúvidas e desconfianças”, mas afirmou que objetivo de todos é
comum: dar sequência à identificação das ossadas.
A mudança de governo federal fez crescer o temor de
interrupção dos trabalhos, retomados em setembro de 2014, por meio de parceria
entre a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a
Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo e a
Unifesp, que permitiu a criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense
(Caaf), com a responsabilidade de analisar as 1.049 caixas com ossadas
encontradas em 1990 no Cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste da
capital. Esse material ficou longo tempo em estado de abandono, até a formação
do Grupo de Trabalho Perus (GTP), em acordo envolvendo União, prefeitura e
universidade, além da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Dois identificados
Em março do ano passado, o primeiro nome foi identificado
entre as ossadas, após envio de centenas de amostras para laboratório fora do
país: Dimas Antônio Casemiro, do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT),
morto em 1971. Em dezembro, a análise permitiu a identificação de mais um
desaparecido político: Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), assassinado no mesmo ano.
Decisões do atual governo aumentaram os temores de
participantes do GTP e, principalmente, dos familiares de vítimas da ditadura.
Um decreto de abril atingiu o grupo de Perus, entre outros. Em agosto, o
governo tirou a procuradora da República Eugênia Gonzaga da presidência da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Em seu lugar, entrou
o advogado Marcos Vinícios Pereira de Carvalho, filiado ao PSL e assessor da
ministra Damares Silva. Presente à audiência desta segunda-feira em São Paulo,
foi Carvalho que propôs a mudança das ossadas, que ficariam sob
responsabilidade da Polícia Civil do Distrito Federal.
Foram muitos os questionamentos sobre a pretensão de mudar a
localização das ossadas. O juiz federal Eurico Maiolino, do Gabinete de
Conciliação do TRF3, comentou que se tratava de um trabalho realizado “a
contento” e pediu esclarecimentos sobre as justificativas econômicas do governo
e possível prejuízo técnico com a alteração. Um procurador chegou a falar em
“falta de humanidade” dos autores da proposta. A procuradora federal dos
Direitos do Cidadão em São Paulo, Lisiane Cristina Braecher, foi enfática:
“Pela primeira vez em décadas, esse processo está funcionando. Para mudar,
precisa de muitas garantias de que vai continuar. E com o que vocês (governo)
trouxeram, nós não temos essas garantias”.
A representante da prefeitura também se posicionou ao lado
da Unifesp. E lembrou que o Executivo municipal está empenhado, neste momento,
em estudos técnicos e de execução orçamentária para a criação de um memorial,
onde ficariam as ossadas após a conclusão dos trabalhos periciais. O vereador
paulistano Antonio Donato (PT) disse que as ossadas “pertencem à cidade” e
considerou “falacioso” o argumento financeiro. Acordo firmado em ação civil
pública, ajuizada pelo Ministério Público Federal, fixa custo de R$ 600 mil
para manutenção do Caaf, valor dividido entre o agora Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos, o Ministério da Educação e a Unifesp.
Tratamento digno
Representantes dos familiares e ex-presa política, Maria
Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, lembrou que acompanha o caso desde a
abertura da vala clandestina, em 4 de setembro de 1990. “Pela primeira vez,
essas ossadas são tratadas com carinho. Pela primeira vez, se trata com
dignidade. Não vejo sentido na transferência. Não estou vendo economia nenhuma,
estou vendo complicação.”
Segundo Amelinha Teles, não se trata de questão ideológica,
como chegou a afirmar o coordenador do Direito à Memória e à Verdade. “Não
estamos olhando aqui cara de governo. Nós trabalhamos por uma questão ética.
Essas ossadas pertencem a pessoas que fizeram história, que fizeram alguma
coisa por esta cidade.” Mas ela lembrou que algumas reações causam apreensão.
Citou declarações de integrantes do atual governo em defesa do Ato
Institucional número 5. “O AI-5 foi responsável por muitos desses mortos que
estão aí. Estamos pagando até hoje pelos erros do passado, independentemente do
lado em que estamos.”
Desentendimentos
O professor Edson Teles, coordenador do Caaf, lembrou que o
trabalho bem-sucedido sobre Perus é resultado de uma “articulação
institucional” que precisa ser mantida. Os representantes da Unifesp afirmaram
que as atividades estão em uma “reta final”. Há 26% das caixas que têm mais de
uma ossada, o que exige uma nova etapa de análise e tentativa de identificação.
Durante a audiência, ao fazer ressalvas de ordem técnica e falar em “problema
ético” que desqualificaria a pretensão de mudar as ossadas, o professor Teles
foi interrompido por Patrick Mallmann,
para quem a afirmação era uma “ofensa”. Pouco antes, o próprio
representante do governo havia questionado procedimentos da Unifesp, causando
reações de representantes da instituição. “Isso não contribui para o processo
de decisão aqui”, afirmou a pró-reitora, professora Raiane Assumpção.
Em outro momento de desentendimento, os contrários à mudança
criticaram, inclusive, o fato de o eventual transporte das ossadas para
Brasília ser feito em avião das Forças Armadas. O coordenador argumentou que já
não são as “mesmas pessoas” do período da ditadura, acrescentando que o
objetivo da reunião era promover uma conciliação. “Se os senhores se opõem a
isso (mudança), a proposição da União cai.” Na sequência, o atual presidente da
Comissão Especial garantiu que o governo continuará “cumprindo aquilo que foi
acordado”, referindo-se ao atual modelo. Outros representantes do governo
garantiram a continuidade de recursos, sem contingenciamento, para que os
trabalhos possam continuar.
“O grande legado desse projeto é esse olhar
multidisciplinar”, disse o perito Samuel Ferreira, coordenador científico do
Grupo de Trabalho Perus. “Esse projeto exige e precisa de olhares técnico
diferenciados.” Ao defender o papel dos peritos, ele lembrou que foram
coletadas 80 amostrar de sangue de familiares e que ele mesmo percorreu 44.428
quilômetros nessa tarefa. “Tudo foi pensado de maneira ética do ponto de vista
da perícia”, afirmou, garantindo que seria possível realizar o trabalho em Brasília,
“técnica e imparcialmente”.
Superada a questão da mudança, a parte final da audiência
foi dedicada à discussão de um colegiado técnico para acompanhar as atividades.
“Não tem uma institucionalidade que garanta a permanência do GTP. Não temos
comitê gestor, não temos comitê científico”, afirmou a pró-reitora da Unifesp,
que vê uma “situação de vulnerabilidade” na sequência do processo.
“Não temos mais o GTP, que foi extinto em abril por um
decreto do atual presidente. Isso nos causa uma dificuldade muito grande. É
necessário refazer a institucionalidade”, acrescentou Edson Teles. “Estamos num
vazio orgânico. Precisamos de um grupo de trabalho que tome as decisões.” Da
parte do governo, a preocupação era no sentido de evitar a “recriação” de um
colegiado já extinto por decisão presidencial. Até o início do ano que vem, as
partes tentarão avançar nesse sentido. O juiz marcou a próxima audiência para
13 de fevereiro.
Via - Rede Brasil Atual
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