Leia o conto do escritor modernista que celebra a felicidade de uma família numa ceia de Natal, apesar do luto.
Publicado originalmente em 1942,
na Revista da Academia Paulista de Letras, O Peru de Natal é um dos contos mais
conhecidos do escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945). Em 1947, dois
anos após a morte de Mário, o conto foi incluído na antologia póstuma Contos
Novos (1947).
O Peru de Natal gira em torno de
uma família enlutada pela perda do pai. Quando chega o Natal, o jovem Juca, de
19 anos, propõe aos parentes que comam peru na ceia. Após protestos iniciais, a
família adere à ideia e vive um Natal único – “minha mãe, minha tia, nós, todos
alagados de felicidade”.
“Ia escrever ‘felicidade
gustativa’, mas não era só isso não”, relata Juca. “Era uma felicidade
maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores
do grande amor familiar.
Confira abaixo a íntegra do
conto.
O Peru de Natal
(Mário de Andrade)
O nosso primeiro Natal de
família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de
consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos
familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente
honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas.
Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de
qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre
nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades
materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas
assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos
desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito,
etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais
pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado
pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto
mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita
no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto
pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre
gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por
espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isto que me
nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas
“loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista
contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que
arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às
escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável
de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada
de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama
conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com
certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os
filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma
superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou,
essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se
realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido,
coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me
queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a
ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos,
passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto
discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de
castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso
que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:
– Bom, no Natal, quero comer
peru.
Houve um desses espantos que
ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco,
advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
– Mas quem falou de convidar
ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru
aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…
– Meu filho, não fale assim…
– Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada
indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que
bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido,
coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e
titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me
divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então
faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já
preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e
dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão
trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a
parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido
vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos
ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna,
vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava
tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru
em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém,
era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda
com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo
recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes
e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira.
Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E
ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho
aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase
gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar,
pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe
venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos,
notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela
loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se
faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia
jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes.
Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã
resolveu o consentimento geral:
– É louco mesmo!…
Comprou-se o peru, fez-se o peru,
etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais
maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia
fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela,
sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também,
estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova
que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as
coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um
momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não
resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase
pobreza sem razão.
– Não senhora, corte inteiro! Só
eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar
estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco,
só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o
mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade
abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas
estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se
realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou
inteiramente reduzido a fatias amplas.
– Eu que sirvo!
“É louco, mesmo” pois por que
havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes
pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heroica,
enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço
admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias
brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos
aspiravam pela sua parte no peru:
– Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar,
a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que
sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que
fazia sofrer! O prato ficou sublime.
– Mamãe, este é o da senhora!
Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com
tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o
novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã,
que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro.
Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove
anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se
esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o
pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai,
com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em
silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito
tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em
quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da
ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali,
gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru,
estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do
Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o
peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e,
está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm
meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem
de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
– Só falta seu pai…
Eu nem comia, nem podia mais
gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os
dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente
me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da
nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
– É mesmo… Mas papai, que queria
tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de
estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de
ver nós todos reunidos em família.
E todos principiaram muito
calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma
estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque
papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que
“vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo.
Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do
céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único
morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento
de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um
momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça!
mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me
transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces,
que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome
perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em
dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…
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