Duas semanas após a execução da vereadora e do motorista
Anderson, uma pensata sobre o papel da mídia comercial no episódio.
ILUSTRAÇÃO DE ROBERT CRUMB, 1977 |
Por *Miguel
Freitas
Duas semanas após a execução da vereadora Marielle e do
motorista Anderson, ainda não solucionada, é possível aprender três importantes
lições sobre o funcionamento da mídia comercial a partir deste caso: o que os
jornais sabem; o que eles publicam; e o que eles pretendem.
1. Os jornalistas conheciam Marielle
Dos diversos jornalistas e colunistas dos grandes jornais
que escreveram sobre Marielle Franco a maioria tratou a vereadora de forma
muito sensível, mostrando estar sinceramente chocados não apenas com a
barbaridade do crime mas também com a dimensão da perda de uma personalidade
como ela. Os jornalistas sabiam que Marielle já era um mito.
O Globo, por exemplo, publicou logo no dia seguinte uma boa
coletânea de textos de colunistas sobre Marielle. Homenagens ressaltaram a
trajetória de Marielle e mostraram compreender que nenhuma sociedade dita
civilizada pode aceitar um crime político desses passivamente.
É claro que nada disso chega a surpreender, pois jornalistas
são, de modo geral, pessoas bem informadas. Ademais, o Rio de Janeiro tem algo
de provinciano e os jornalistas sabem quem são os bons e os maus políticos,
mesmo que não publiquem. O que nos leva precisamente à segunda lição:
2. Os jornais não publicavam Marielle
Alguns amigos me questionaram com certa incredulidade: “mas
você conhecia a vereadora executada antes do assassinato dela?” Sim, conhecia.
Acredito que todos os outros 46 mil eleitores que também votaram nela fizeram
isso após conhecer sua história de vida e ativismo. Foi certamente um dos votos
mais convictos e sem nenhum arrependimento que já tivemos.
Na minha opinião, Marielle era a maior renovação na política
carioca em muito tempo. E digo isso não porque ela fosse de esquerda ou de
direita, mas porque era sincera, honesta e totalmente dedicada às causas que se
propunha. Marielle era uma autêntica representante da população e, mesmo que
alguém possa contra-argumentar que representasse apenas um segmento específico
da população, não há como negar: ela não estava na Câmara para conseguir “uma
boquinha”. É exatamente este tipo de dedicação à vida pública que deveríamos
valorizar como critério para a tão falada renovação política.
Marielle era a maior renovação na política carioca em muito
tempo. E digo isso não porque ela fosse de esquerda ou de direita, mas porque
era sincera, honesta e totalmente dedicada às causas que se propunha
O que vemos, no entanto, são jornais tentando vender que o
“novo” seria lançar um apresentador de auditório como candidato a presidente,
sendo apoiado pelas velhas raposas de sempre. É essa a renovação que vocês
querem?
Por acaso os jornais publicaram alguma notinha quando
Marielle propôs a Lei do Espaço Coruja, um espaço onde as mulheres que
trabalham à noite possam deixar suas crianças pequenas? Ou quando ela denunciou
a violência do 41º BPM de Acari, o
batalhão que mais mata no Rio? E onde estavam os jornais enquanto Marielle
ajudava o Coronel da PM Robson Rodrigues a agilizar os processos de pensões das
viúvas de policiais mortos no Rio?
Não, os jornais não publicavam Marielle. Não tinham
interesse. Para se ter uma ideia, apenas agora, depois de toda esta
repercussão, é que ficamos sabendo pelos jornais que a vereadora Taliria
Petrone, de Niterói, amiga de Marielle, está recebendo ameaças de morte.
Vale refletir: será que os jornais estão realmente
preocupados em nos informar? Estariam eles autenticamente interessados em
ajudar a renovar a política?
3. A Rede Globo quer manipular o significado de Marielle
O jornalista Glenn Greenwald publicou uma excelente análise
sobre as técnicas e os objetivos ocultos da Globo ao dedicar 45 minutos do
Fantástico para falar de Marielle.
Além de jornalista premiado, Greenwald era amigo pessoal da
vereadora, colega de Câmara de seu marido, David Miranda, também do PSOL.
Traçando paralelos com o esvaziamento feito nos Estados Unidos do significado e
da luta de Martin Luther King, Greenwald mostra que a estratégia da Globo é
explorar o drama humano do crime bárbaro e do luto, escondendo porém as
opiniões radicais de Marielle.
Marielle fazia questão de se apresentar sempre como mulher
negra, favelada e LGBT. Agora, após o assassinato dela, simplesmente não há
mais nenhuma vereadora negra no Rio. Dá para imaginar que os interesses das
mulheres negras (que correspondem a 1/4 da população brasileira) estão sendo
considerados na hora de definir políticas públicas?
É hora de denunciar essa tentativa de esvaziamento do
significado de Marielle Franco pela mídia comercial. Que isso seja feito por
ela e para que todos os nossos amigos e conhecidos tenham acesso à informação
correta.
A melhor forma de lembrar e homenagear Marielle é conhecer
suas ideias e sua luta. Um bom começo seria baixar o capitulo escrito por
Marielle para um livro ainda não publicado e que foi disponibilizado pela
editora Zouk na internet, A emergência da vida para superar o anestesiamento
social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma
feminista, negra e favelada.
É hora de denunciar essa tentativa de esvaziamento do
significado de Marielle Franco pela mídia comercial. Que isso seja feito por
ela e para que todos os nossos amigos e conhecidos tenham acesso à informação
correta e não manipulada.
Caso contrário, em breve poderemos estar assistindo a uma
nova convocação de passeata pela Globo, onde “manifestoches” exibem
orgulhosamente cartazes com o rosto de Marielle em defesa de Temer e da
intervenção militar como solução para a violência no Rio. Tudo aquilo que ela
era radicalmente contra em vida.
*Miguel Freitas é engenheiro e coordena um laboratório de
pesquisas na PUC-RJ, a mesma universidade onde Marielle se graduou em
Sociologia.
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