Por Wilton Cardoso
O que o senso comum costuma entender por politização de um
grupo social ou de uma nação é a capacidade dos indivíduos perceberem o seu
destino como coletivo e, a partir daí, agir politicamente de forma associada,
seja integrando ativamente algum tipo de associação formal ou informal, se
manifestando em espaços públicos e participando ativamente dos pleitos
eleitorais, não em interesse próprio ou de terceiros, mas no da coletividade.
Assim entendida, a politização costuma predominar nas
esquerdas, sejam elas revolucionárias, reformistas ou anti-imperialistas
(nacionalistas). Os indivíduos com tendências
liberais (incluindo aí os neoliberais) e conservadoras são
despolitizados, ou melhor, se contentam com as regras do jogo da política
nacional, seja ela uma democracia representativa ou um regime autoritário que
mantenha a ordem da nação e que eles apoiam ou aceitam. No mais, tratam de cuidar
de suas vidas individuais e familiares dentro das regras capitalistas e, no
caso dos conservadores, seguindo ou aparentando seguir a moral e os bons
costumes.
Além de perceber seu destino como coletivo, outro aspecto do
indivíduo ou grupo social politizado é seu caráter utópico, seu desejo de
modificar a sociedade de forma benéfica para todos ou, pelo menos, para grupos
sociais específicos: nação, pobres, negros, mulheres etc.
Portanto, de acordo com a opinião corrente (doxa), a
politização se sustenta em dois pilares: a importância dada à mobilização
coletiva, que se sobrepõe ou se equilibra com o mérito pessoal; e a vontade
utópica de promover a mudança social, que não raro se efetiva como prática.
O sujeito despolitizado, ao contrário, percebe o empenho e o
mérito pessoal como mais importantes do que a mobilização social e aceita ou
defende a ordem estabelecida do capitalismo liberal como justa e ideal para que
os indivíduos se desenvolvam. Se fazem críticas de ordem política ou econômica,
estas costumam ser pontuais e se referem menos à mudança sistêmica do que ao
aperfeiçoamento da política. E quase sempre na direção de deixar os indivíduos
e empresas agirem em busca de seu sucesso pessoal.
Os chamados despolitizados são os que aderem à política
liberal e seu individualismo fragmentário sem maiores questionamentos. São, na
verdade, politizados, mas no grau zero da política própria do capitalismo. Esse
grau zero são as bases políticas dadas pelo liberalismo e supõe a prevalência
do livre mercado, das liberdades individuais e, se possível, a democracia
formal e o estado de direito.
O neoliberalismo, que se tornou o destino político e
econômico do capitalismo ocidental, a partir da década de 1980, promoveu e
disseminou globalmente esse grau zero da política, cujo indivíduo modelar é o
homem de classe média, racional, trabalhador e competitivo, de mentalidade
individualista e meritocrática – o despolitizado por excelência.
Este homem pós-moderno se vê como capital individual
auto-empreendedor (mesmo se for funcionário) e todas as suas ações são no
sentido de multiplicação do capital próprio: o crescimento pessoal se confunde
com a acumulação particular de capital, na forma de posses, renda e/ou capital
cultural, para usar o termo que Jessé Souza tomou da sociologia de Pierre
Bourdieu.
Inclusive o indivíduo pobre das classes populares tende a se
estruturar mentalmente como homem de classe média, desejando e lutando para atingir
tal patamar social, o que é impossível na quadra atual do capitalismo, cuja
tendência incontornável é o aumento da pobreza e a diminuição numérica das
classes médias, como já tratei em outro artigo.
O desencanto inevitável com as promessas da política liberal
O liberalismo individualista é a política de base do
capitalismo. Mesmo os progressistas e conservadores, que divergem dos liberais,
o fazem sem contestar seus fundamentos políticos e econômicos, que são as bases
éticas e funcionais do capitalismo: estado nacional, direito, lucro,
propriedade privada, competição, racionalidade instrumental, trabalho
remunerado etc.
Quero enfatizar dois aspectos problemáticos do liberalismo e
sua política de grau zero, vista pelas esquerdas como despolitizadora dos
indivíduos. O primeiro, já referido acima, é que ela tende a estruturar os
indivíduos como capitais individuais auto-empreendedores com a promessa de que
o empenho individual (nos estudos, no trabalho, na formação contínua) vão levar
o indivíduo e sua família a uma vida confortável. E que isso pode acontecer de
forma massiva, pois supõe que todos os que se dedicarem como indivíduos
empreendedores, terão uma vida confortável.
A realidade, como se sabe, é bem outra e no capitalismo
atual não há lugar para uma maioria numérica de classe média em países em
desenvolvimento e mesmo nos ricos países centrais a pobreza relativa aumenta a
olhos vistos, sem que nada se possa fazer a respeito.
Então, as pessoas começam a perceber, corretamente, que todo
o aparato político de cunho liberal, como eleições, estado de direito, instituições
como estado, partidos, três poderes, mídia etc, tudo isso não é feito para o
bem estar das pessoas em geral, beneficiando apenas uma pequena elite: os 10%
de classe média alta e os 1% ricos. (Na verdade o capitalismo não é dominado
por essas elites, mas sua lógica concentradora leva irremediavelmente à
concentração de renda, riqueza e poder não mãos de uns poucos: por isso, é mais
correto falar em “elite privilegiada” do que “elite dominante”).
É aí que entra o segundo aspecto problemático do liberalismo:
ele não oferece alternativas à sua política de grau zero, individualista e
voltada para os interesses do capital. No máximo, as pessoas podem formar
sindicatos e associações para vocalizar suas reivindicações ou para a ação
coletiva. Mas nada disso promove, no capitalismo atual, melhorias de vida
significativas em termos econômicos para as pessoas, conseguindo, quando muito,
mitigar os problemas sociais decorrentes da desigualdade crescente.
Como afirmava Margaret Thatcher, “o que é a sociedade? Não existe
essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias”. E, em
relação a isso e aos demais princípios liberais que nos governa, ela arrematava
que “There Is No Alternative” (em português, ‘Não há alternativa’). Podemos
reprovar o cinismo e a desumanidade de Thatcher, mas ela está rigorosamente
correta do ponto de vista da lógica liberal, que é também a capitalista e que,
cedo ou tarde, acaba se impondo a tudo e a todos enquanto o sistema mercantil
perdurar.
A socialização abstrata do capitalismo e a repolitização da
sociedade
Mas o fato é que a condição humana é coletiva desde sempre e
mesmo o capitalismo se organiza numa dimensão social (a sociedade que Thatcher
rejeitava), na forma de mercado e capital. Só que essa ordem social é abstrata
e alienada das vontades das pessoas, que se tornam coisas mercadológicas, ao
negociarem seu trabalho ou seus bens no mercado.
A socialização capitalista existe num grau até maior que nas
outras sociedades (a prova disso é que só sobrevivemos com os bens produzidos
por terceiros), mas ela aparta os indivíduos concretos como produtores
particulares e isolados na economia, e como sujeitos abstratos do direito na
esfera política e civil. Concretamente, as pessoas encontram-se de fato
isoladas umas das outras, com exceção do círculo íntimo de familiares e amigos.
Tal situação representa um perigo quando as pessoas caem na
miséria e não encontram ninguém a quem recorrer, mas também representou
avanços, como Marx demonstrou, ao libertar as massas da dominação direta que
havia entre nobre e servo, senhor e escravo ou coronel e agregados.
Em todo caso, as
pessoas sentem um terrível mal estar no capitalismo por conta do bloqueio que
este promove na socialização direta entre os indivíduos e na visão de um
destino coletivo para o povo ou a comunidade. No grau zero da política liberal,
é a própria noção de comunidade concreta que se esgarça, restando, como
afirmava Thatcher, apenas os indivíduos e suas famílias.
Esse mal estar vem à tona em momentos de crise, quando as
contradições do capitalismo se explicitam e o grau zero da política mostra que
as instituições liberais servem antes para preservar o capital e seus
privilegiados (elites) e não para amparar a vida das pessoas concretas.
É aí que as críticas difusas sobre as instituições liberais
começam a emergir de forma irresistível e poderosa, como, por exemplo, a
opinião geral sobre o Poder Legislativo ser, na verdade, um balcão de negócios
escusos que se passa por representante do povo. Ou sobre o Judiciário ser uma
casta de funcionários muito bem pagos que não estão ali para aplicar as leis e
fazer justiça, mas para beneficiar poderosos desonestos com bons advogados.
Então, a legitimação do estado de direito e as instituições
que o promovem, que sempre foi problemática entre o povo, começa a se
desmoronar. No lugar desse vazio político do liberalismo, de seu individualismo
e seu grau zero da política, começa a se gestar outra vez as tendências
espontâneas da condição humana de ressocialização e estabelecimento de um
destino coletivo (uma comunidade) que abarque os indivíduos.
Ocorre, então o fenômeno da repolitização dos grupos sociais
e seus indivíduos, que pode tomar vários rumos e significados. O mais conhecido
é a repolitização de feição progressista que, quando radicalizada, pode tomar
rumos revolucionários. Ela levou à social-democracia do Pós-Guerra e aos
socialismos realmente existentes do Leste Europeu, URSS, China e Cuba.
Mas há também a repolitização conservadora ou reacionária,
como a do Irã, que resultou na teocracia dos Aiatolás. E o Golpe de 1964 no
Brasil (e no resto da América Latina) não deixa de ser consequência de uma
certa repolitização reacionária de parcela da sociedade, que vence, pela força,
as tendências progressistas que apoiavam Jango.
Mas ambas as repolitizações (progressistas e reacionárias)
costumam ser fenômenos passageiros e não causam abalos nos princípios liberais
de base, exceto no caso das revoluções socialistas. Mesmo a ruptura iraniana
com o imperialismo norte-americano preservou os mercados, tanto internamente
quanto a inserção do Irã no capitalismo global.
E tão logo a repolitização provoca a mudança social desejada
(que, como vimos não é estrutural em relação ao capital), ela restabelece
novamente a despolitização dos grupos sociais, integrando-os na nova ordem
social e restituindo, de acordo com o contexto, o grau zero da política que
possibilita a reprodução do capital.
A repolitização fascista
Além das repolitizações de feição progressista e
reacionária, há outra, muito mais perigosa, inclusive para o próprio
capitalismo, a fascista. Ela se assenta em percepções críticas difusas e, em
geral, corretas sobre o sistema democrático, os políticos e suas instituições,
ao notar que a política em geral, seja ela de caráter liberal ou progressista,
é intrinsecamente corrupta e feita para beneficiar os poderosos.
Há então, por parte dos fascistas, uma revolta generalizada
contra a política. Por isso, eles são qualificados como “negadores da
política”, “analfabetos políticos” ou “pessoas despolitizadas”.
A verdade, porém, é que os fascistas são bastantes
politizados, se entendermos este termos de acordo com a opinião corrente
(doxa), pois dão importância à mobilização coletiva, que se sobrepõe ou se
equilibra com o mérito pessoal, e possuem uma vontade utópica de promover a
mudança social.
Destino coletivo e mudança social voltam à ordem do dia com
as massas fascistas, inclusive com o ativismo de um pequeno contingente dessas
massas, extremamente engajado, barulhento e muitas vezes violento. A despolitização
neoliberal é confrontada, agora, com uma nova politização das massas, não mais
progressista e nem mesmo reacionária, mas paranoica.
Politização paranoica porque a utopia fascista é, de todas,
a mais inatingível e delirante de todas: manter o sociedade capitalista e
extirpar a corrupção no plano econômico, político e principalmente moral, pois,
no fim das contas, a causa da corrupção é moral, uma questão de pureza que, não
raro, se reveste de purificação racial ou religiosa.
Paranoica também porque a purgação da corrupção para o
fascista só pode se dar pela punição e destruição e nunca encontra um fim,
nunca é suficiente e sempre deve continuar, cada vez mais radical e violenta,
até que renasça um homem e uma maioria adâmica, harmoniosa e livre das impurezas
do homem liberal ou progressista/comunista.
Paranoica, ainda, porque ao eleger determinadas práticas e
grupos sociais como corruptos, a massa fascista fecha os olhos para as piores
barbaridades e atos claramente corruptos de seus próprios líderes e membros
mais ativos: torturas, assassinatos, injustiças, roubos, mentiras etc. Exemplo
claro disso é a cegueira dos bolsonaristas (hoje, um terço da população) em
relação ao claro envolvimento de Bolsonaro com as milícias cariocas.
A luta contra a corrupção é apenas um engodo que os
fascistas utilizam para encobrir, principalmente para si mesmos, sua real
“utopia”, que é a destruição pela destruição. É por isso que a corrupção e sua
purgação nunca terminam, pois a destruição não pode parar até que tudo seja
ruína. E é por isso que fecham os olhos para sua própria corrupção: não é
apenas por hipocrisia, mas porque o seu real objetivo, que eles mesmo não têm
consciência, nunca foi acabar com a corrupção, mas com o mundo a sua volta. A
Lava Jato é o exemplo mais claro desse desejo de destruição, neste caso do país
e suas empresas mais modernas, sob o disfarce (na verdade o autoengano) de
combate à corrupção.
A politização fascista, portanto, resgata para as massas o
sentimento do destino coletivo do povo e a vontade de mudança. O problema é de
conteúdo desse destino, que não se assenta em nenhuma espécie de racionalidade,
nem mesmo regressiva. Não se trata de fundar uma nova coletividade baseada em
valores arcaicos ou modernos, na fé, na arte ou na ciência, nem de propor uma
nova forma de exercício de poder (nova política) para as próximas gerações. O
destino do povo é resgatado como purgação coletiva cujo objetivo final é a
destruição do inimigo e, por fim, a autodestruição coletiva.
O fascismo surge em sociedades fracassadas, cujos problemas
provocados pelo desenvolvimento do capitalismo são projetados num outro, o
inimigo que seria responsável pelo fracasso social (judeus, negros, ativistas,
progressistas/comunistas, nordestinos, políticos etc). No fim das contas, o
ódio do fascista é contra si mesmo, contra sua derrota na sociedade
ultra-competitiva do capitalismo global.
O fascista sente uma enorme vergonha e raiva de si (o famoso
espírito vira-latas) e no final do processo de purgação moral, quando os
inimigos mais imediatos são derrotados, seu ódio acaba por se voltar
inconscientemente contra si mesmo, na forma de auto-sabotagem. É quando a
Alemanha abre duas frentes de guerra contra potências muito maiores que ela
(URSS e EUA).
É quando, na atual conjuntura brasileira, os lavajateiros
destroem a engenharia, petroquímica e a indústria naval nacional em parceria
com o Departamento de Justiça dos EUA e o Governo Bolsonaro lambe as botas
norte-americanas sem pedir nada em troca e não faz absolutamente nada para
combater a pandemia do coronavírus, na frente sanitária ou econômica. O
fascismo brasileiro é um duplo combate ao progressismo moderado do PT, taxado
de comunista, e ao próprio país enquanto comunidade nacional, provocando a
autodestruição de sua economia e de seu povo.
Os fascistas não são despolitizados, Ao contrário, a
(re)politização fascista é efetiva e avassaladora. Ela entorpece e excita as
massas que se veem como coletividade atuante e anseiam raivosamente a mudança.
Seu delírio, no entanto, às guia para a destruição do outro e de si mesmo. Sua
politização se manifesta pelo ódio e pela irracionalidade absoluta que solapa,
inclusive, a racionalidade instrumental do capitalismo.
E quando o fascismo avança ele se torna um poder político
revolucionário capaz de submeter inclusive o todo poderoso capital, que deixa
de funcionar para o lucro e passa a servir ao desejo irracional de destruição
pela destruição. É quando os liberais e conservadores aceitam, como diria
Churchill, fazer alianças até com o diabo (progressistas e comunistas) para
combater o fascismo. Parece que ainda não chegamos a este ponto no país.
Via - Jornal GGN
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