Por José Guilherme
Quando um homem sobe ao palco e, diante de mil pessoas, faz
a apologia de um assassinato notório... e o faz em nome de religião... não se
iludam: o mundo já acabou.
O herói de Marco Feliciano chama-se Mark Chapman. Em 9 de
dezembro de 1980, Chapman esperou por John Lennon, na frente de sua casa, em
Nova Iorque. Às cinco da tarde, pediu-lhe um autógrafo na capa do LP
"Double Fantasy". Postou-se depois num canto da entrada do prédio
onde Lennon morava, o famoso edifício Dakota. Às 22h50, quando Lennon e sua mulher
Yoko Ono voltaram, Chapman matou-o com cinco disparos pelas costas, quatro dos
quais o acertaram. Foram quatro, não foram três, como quer Feliciano.
John Lennon foi o corpo e a alma da virada cultural dos anos
1960 e é compreensível que Feliciano o deteste. Afinal, a virada cultural à
frente da qual estiveram Lennon, os Beatles e tantos outros foi uma revolução
incompatível com os princípios comportamentais hoje defendidos por alguns
fanáticos alegadamente cristãos. Nesse ponto, não adianta fingir espanto. O
fanatismo religioso não varia na sua estrutura: sempre almeja a morte do
diverso, de tudo o que é divergente de si.
Gente como Feliciano, de resto, não parece gostar muito de
música, exceto a música "funcional", que serve aos propósitos
específicos de sua doutrina. Isso também ajuda a entender seu desprezo por
Lennon e a facilidade com a qual transpira em êxtase, na gravação, para
glorificar o assassinato do ex-beatle. Para Mark Feliciano, a morte trágica de
Lennon não é um efeito de nossa loucura pop, individual e coletiva. É uma prova
concreta da existência de seu deus castigador e justiceiro. Um deus Thor,
furioso cuspidor de raios.
Para Feliciano, Chapman foi um instrumento da justiça divina
na Terra. Um anjo, portanto. Mas John Lennon, com a verve que marcou sua
carreira, "comentou" o episódio antes mesmo que acontecesse. E deu
uma resposta antecipada ao grotesco teatral que esse video nos trouxe.
Perguntado por um jornalista sobre como esperava morrer, ainda nos anos 60,
Lennon respondeu jocosamente: "Serei provavelmente pipocado por um
lunático" ["I'll probably be popped off by some loony"]. Só não
previu que um "pastor de almas" faria o elogio catártico do
homicídio, 30 anos depois, no palanque de uma igreja suburbana
latino-americana.
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