Procurado pela polícia e hospedado de favor na casa de fãs, o compositor de clássicos como “Divina comédia humana” protagoniza uma história de amor e decadência
A FELICIDADE É UMA ARMA QUENTE Belchior com a mulher, a produtora cultural Edna Prometheu. “Eles juntaram suas utopias”, diz o amigo José Roberto Aguilar (Foto: Bruno Alencastro/Ag. RBS) |
Por MARCELO BORTOLOTI no Época
Capítulo 1
“No trevo, a 100 por hora”
Edna Prometheu é o pseudônimo da produtora cultural Edna
Assunção de Araújo, de 46 anos. Morena, de cabelos encaracolados e baixa
estatura, não é uma mulher de beleza estonteante. Militante de organizações de
extrema-esquerda, é definida por seus amigos como “idealista utópica”. No
começo de 2005, ela estava em São Paulo, no ateliê do artista plástico cearense
Aldemir Martins, já morto, quando entrou pela porta o músico Belchior. O cantor
de “Paralelas” também pinta quadros e frequenta o ambiente artístico. Edna
queria organizar uma exposição de Aldemir no Ceará. Belchior disse que tinha
amigos por lá, poderia ajudar. Trocaram telefones.
Os dois acabaram organizando juntos a exposição em
Fortaleza, naquele mesmo ano. Na volta, Edna ligou para um amigo e contou a
novidade: “Estamos namorando”. A partir daí, a vida plácida de Belchior
derrapou no trevo a 100 por hora, como diz a letra de “Paralelas”. Para ficar
com Edna, ele abandonou a então mulher, Ângela, com quem estava casado havia 35
anos, mãe de dois dos quatro filhos que tem. Afastou-se dos amigos e foi
gradativamente deixando de fazer shows, até sumir sem dar explicações, em 2009.
“Essa figura nefasta está fazendo uma lavagem cerebral nele”, afirma Jackson
Martins, ex-empresário de Belchior. “Depois dela, sua vida só andou para trás”,
diz o artista plástico cearense Tota, amigo de Belchior.
O desaparecimento de Belchior, há cinco anos, surpreendeu a
todos, família e amigos. Ninguém poderia esperar tal atitude. Ele deixou para
trás a agenda de shows e todo o patrimônio, incluindo roupas, documentos,
quadros, automóveis e apartamento. O sumiço transformou Belchior em figura cult. A pergunta “onde está
Belchior?” ecoou na internet e teve até repercussão internacional. Surgiram
blogs sobre o tema. Campanhas nas redes sociais pediram a volta do músico. E apareceram montagens
cômicas – “memes” – em que Belchior aparece em locais inusitados como a ilha do
seriado Lost. Suas músicas no YouTube, que antes tinham 5 mil acessos diários,
hoje batem 500 mil.
O sucesso no mundo virtual não trouxe nenhum benefício para
o Belchior de carne e osso. Aos 67 anos, ele vive escondido com Edna em Porto
Alegre. Não pode sair em público, pois é procurado pela polícia. Pesam contra
Belchior dois mandados de prisão pelo não pagamento de pensões alimentícias.
Uma devida à ex-mulher Ângela, com quem tem dois filhos já maiores de idade, e
outra à mãe de uma filha de 19 anos que teve fora do casamento. Além das
pensões, Belchior abandonou todos os demais compromissos e é cobrado na Justiça
em processos que correm à revelia. O ex-secretário particular de Belchior,
Célio Silva, ganhou um processo trabalhista contra ele no valor de R$ 1 milhão.
Não há mais como recorrer. As contas de Belchior estão bloqueadas, e os imóveis
que tinha comprometidos. Sem dinheiro, ele já se abrigou numa instituição de
caridade no Rio Grande do Sul e morou de favor na casa de fãs que nem conhecia.
O mais intrigante na espantosa história de Belchior é que
ele aparentemente não agiu movido por depressão, dívidas ou golpe publicitário,
como se pensou no princípio. A influência da mulher é apontada pela maioria dos
amigos como o motivo do seu comportamento. Ainda assim, não há unanimidade.
“Edna não conseguiria sozinha virar a cabeça de alguém inteligente como
Belchior. São dois sonhadores, juntaram suas utopias. Deixaram de acreditar
neste mundo materialista, objetivo e mesquinho e partiram para um caminho de
desapego”, diz o artista plástico José Roberto Aguilar, de 72 anos, amigo do
casal.
Belchior nasceu numa família simples no interior do Ceará.
Foi o mais bem-sucedido entre 23 irmãos. Estudou medicina na capital. Abandonou
o curso depois de quatro anos, para ingressar na carreira artística. Estourou
nos festivais na década de 1970 e compôs músicas com letras poderosas, como “A
palo seco”. Seus sucessos foram gravados por Elis Regina, Jair Rodrigues e
Roberto Carlos. Belchior é um artista com vasta cultura, domina cinco idiomas,
conhece filosofia e gosta de física quântica. Até os anos 2000, lançava em
média um disco por ano. “Ele era uma máquina, chegava a fazer três shows por
noite. Era uma pessoa completamente dedicada à carreira”, diz o parceiro e
ex-sócio Jorge Mello.
Tudo isso ficou para trás. O sumiço de Belchior lembra o
caso do escritor russo Liev Tolstói. Aos 82 anos, ele abandonou tudo para viver
como camponês. Tolstói teve um fim trágico – morreu de pneumonia depois de
viajar na terceira classe de um trem durante o inverno soviético. Belchior,
quanto mais se afasta da vida em sociedade, mais se afunda em dificuldades
mundanas.
Capítulo 2
“Onde nada é eterno”
Depois que conheceu Edna, Belchior percorreu uma trajetória
descendente em que, aos poucos, se despojou de todos os bens e obrigações. No
final de 2006, ainda com a carreira aquecida, pediu que o empresário Jackson
Martins parasse de agendar novos shows. Pretendia passar um tempo se dedicando
à pintura e à tradução do poema Divina comédia, de Dante Alighieri, para uma
linguagem popular. No início do ano seguinte, deixou o apartamento em que vivia
com Ângela, mas continuou morando em São Paulo com Edna, num flat alugado.
Desde então, a família diz não ter mais notícias dele. Belchior não era um
marido muito presente, ficava até dois meses sem aparecer em casa. Teve duas
filhas fora do casamento. Uma delas com uma fã que morava em São Carlos, no
interior de São Paulo, com quem saiu uma única vez. A outra era fruto de um
caso com uma estudante de psicologia no Ceará. Belchior pagava pensão
alimentícia para a primeira. A família da segunda menina, hoje com 16 anos, não
o acionou na Justiça.
As complicações começaram a aparecer em 2008. Ângela cobrava
na Justiça uma pensão mensal de R$ 7 mil. Belchior se recusou a pagar. Na
época, deixou de pagar também a outra pensão. Seus amigos notaram uma diferença
de comportamento. “Ele parecia estranho. Me ligou perguntando sobre amigos que
não vemos há 30 anos, num tom de voz que não era o seu”, diz Jorge Mello. Em
outubro daquele ano, abandonou um carro no estacionamento do aeroporto de
Congonhas, em São Paulo.
Belchior continuou em São Paulo até março de 2009, quando
deixou o flat sem quitar os últimos meses de aluguel. Na garagem, ele largou um
segundo carro, e em seu apartamento ficaram roupas, rascunhos de música,
cartões de crédito e o passaporte. Belchior também abandonou tudo na casa
alugada onde funcionava seu escritório: coleção de quadros, discos, documentos
e o computador onde estava parte da tradução da Divina comédia, projeto que lhe
consumira três anos. Seu secretário, Célio Silva, continuou abrindo o
escritório, na esperança de que retornasse.
Belchior viajara com Edna para o Uruguai, onde descansava
num vilarejo. Foi processado por Célio e por todos os credores que ficaram em
São Paulo. Não se defendeu. Foi representado por defensores públicos até nos
processos de pensão alimentícia. Como consequência, suas contas foram
bloqueadas, e apareceram dois mandados de prisão contra ele, já que não pagar
pensão é um crime passível de cadeia. “Como não tive contato com ele, a defesa
ficou restrita a questões formais”, diz a defensora Claudia Tannuri, escolhida
para defendê-lo no processo movido pela ex-mulher Ângela. Belchior nem sequer
se importou com o destino de seus pertences. As roupas que estavam no flat foram
doadas à caridade. A filha mais velha recolheu os documentos. Os carros foram
levados para depósitos públicos. A dívida com os estacionamentos já
ultrapassava seu valor. O proprietário do imóvel onde funcionava o escritório
lacrou o lugar e recolheu os pertences. Seus quadros se perderam com a umidade.
Como na música “Divina comédia humana”, “em que nada é
eterno”, Belchior e Edna perambularam durante todo esse período de hotel em
hotel – várias vezes, sem pagar a conta. Amigos culpam Edna pela iniciativa. O
primeiro hotel em que isso aconteceu foi o Gran Marquise, em Fortaleza. Os dois
ficaram hospedados ali ainda em 2006. Saíram sem pagar dois meses de estadia,
no valor de R$ 8 mil. Depois, repetiram a prática em pelo menos quatro locais.
No Icaraí Praia Hotel, em Niterói, deixaram uma conta de R$ 4 mil. “Alguns
funcionários tiveram de arcar com parte da dívida, já que permitiram que ele
ficasse hospedado mais de uma semana sem pagar a conta”, diz o atual gerente,
Germano Lopes. No Royal Jardins Boutique, em São Paulo, a conta pendurada foi
de R$ 12 mil. “Eles deixaram um cheque caução, mas não tinha fundos”, diz Elly
Shimasaki, gerente na ocasião.
O caso mais recente foi no hotel Cassino, na cidade de
Artigas, no Uruguai, onde o casal se hospedou entre julho de 2011 e novembro de
2012. Os últimos meses ficaram sem pagamento, restando uma dívida de R$ 35 mil.
Lá, Belchior deixou para trás roupas e um laptop.
“É uma lástima que um artista brasileiro dessa importância
tenha agido assim”, diz o gerente uruguaio Ricardo Rodrigues. O hotel entrou
com uma queixa criminal contra o casal.
Capítulo 3
“Sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”
Nos últimos anos, Belchior se manteve à distância de
qualquer atividade remunerada. Em 2009, quando o desaparecimento ganhou
repercussão nacional, a montadora General Motors ofereceu um cachê milionário
para ele aparecer num comercial. Belchior deveria dizer que, com o novo carro
da GM, até ele voltava. Belchior recusou o convite e ficou bastante chateado
com o teor da proposta. O empresário Jackson Martins diz que recebe constantes
pedidos para shows, mas não consegue localizá-lo desde 2007. “Pago as dívidas
dele se ele voltar”, diz. Outro empresário que trabalhou com Belchior por quase
30 anos, Hélio Rodrigues, diz que o desaparecimento fez aumentar o interesse do
público. “Depois do escândalo, ele consegue lotar qualquer casa de espetáculo.
Com dois shows em São Paulo, eliminaria as dívidas”, diz.
Hoje, a maior pendência de Belchior é o processo trabalhista
ganho pelo secretário Célio, no valor de R$ 1 milhão. A causa está julgada. Um
apartamento de propriedade do músico em São Paulo está em execução. A dívida da
pensão para a ex-mulher Ângela soma cerca de R$ 300 mil. Mas cresce a cada dia,
já que Belchior continua obrigado a pagar R$ 7 mil por mês. “O sumiço só
agravou a situação dele. Se não tem dinheiro, deveria enfrentar juridicamente o
processo, argumentando que não pode pagar”, diz Paulo Sato, advogado de Ângela.
A pensão atrasada da filha que mora em São Carlos gira em torno de R$ 90 mil.
As dívidas com hotéis cobradas na Justiça somam R$ 47 mil. Não são impagáveis,
desde que Belchior volte a se apresentar.
A derradeira fonte de renda de Belchior eram os direitos
autorais de suas músicas. Segundo o Escritório Central de Arrecadação e
Distribuição (Ecad), nos últimos cinco anos foram depositados R$ 367 mil
referentes à execução pública de suas obras. Parte do dinheiro ficou retida
quando as contas bancárias foram bloqueadas. Desde então, Belchior não contou
com nenhum outro tipo de renda.
Capítulo 4
“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho”
Em janeiro deste ano, Edna e Belchior procuraram a
Defensoria Pública em Porto Alegre. A história ganhou ingredientes ainda mais
estranhos. Os dois alegavam que o bloqueio das contas e os mandados de prisão
impediam que ele trabalhasse e voltasse a ganhar dinheiro para pagar as
dívidas. Belchior aparentemente estava disposto a voltar. Mas o comportamento
do casal era confuso. Edna falava desbragadamente, enquanto Belchior ficava
quase sempre calado. “Durante um mês, me informei sobre os processos que
tramitam em São Paulo. Fizemos um pedido judicial para a suspensão da execução,
até que ele conseguisse se restabelecer. Nesse meio-tempo, Belchior sumiu”, diz
a defensora pública Luciana Kern, que o atendeu.
Nesse mesmo período, Edna ligou para o jornalista gaúcho
Juremir Machado, que não conhecia. Disse que Belchior estava escondido na
cidade e precisava de ajuda. Ela queria que Juremir os levasse à sede regional
da TV Record para fazer uma denúncia delirante. Juremir notou algo de incomum
no casal. Eles se escondiam atrás de pilastras e ficavam olhando a movimentação
nas ruas antes de entrar em algum lugar, como se fossem seguidos. Na
retransmissora da TV, Edna afirmou ter um dossiê contra a TV Globo. O programa
Fantástico noticiara o desaparecimento de Belchior em 2009 e a fuga do hotel
uruguaio, em 2012. “Ela dizia que Belchior era difamado pela Globo e queria
justiça. Falou até que havia uma tentativa de matá-lo”, diz a jornalista Vânia
Lain, que recebeu os dois. Eles disseram que voltariam na semana seguinte
trazendo os documentos, mas desapareceram.
Em Porto Alegre, Belchior e Edna ficaram inicialmente
hospedados num hotel simples no centro, pago com ajuda dos funcionários do
Tribunal de Justiça, primeira porta em que o casal bateu quando chegou à
capital gaúcha. Depois, foram abrigados no Centro Infantojuvenil Luiz Itamar,
instituição de caridade na região metropolitana. Dali, foram levados ao
advogado Aramis Nacif, ex-desembargador do Estado, que poderia ajudar Belchior
com os processos. “Ele dizia que um agente apareceria, mas nunca apareceu”, diz
Nacif. Durante um mês, o casal ficou abrigado na casa de praia do filho dele.
“Eles não tinham dinheiro algum. Edna apresentava um sentimento de perseguição
muito grande, parecia ter algum distúrbio psicológico”, diz. Foi nesse momento
que Belchior conheceu o advogado Jorge Cabral, na casa de quem se hospedou por
quatro meses.
Cabral tomou um susto ao perceber que um músico importante
como Belchior estava ali. E os convidou para ir a um sítio de sua propriedade,
em Guaíba, local mais agradável. Belchior e Edna continuavam sem dinheiro.
Nesse período, o advogado levou mantimentos, roupas, itens de higiene pessoal e
até tintura para Belchior pintar os bigodes de preto.
No sítio de Cabral, Belchior não bebia nem comia carne
vermelha. Passava os dias tomando chá, caminhando e cuidando das ovelhas. Fazia
muitas anotações em papéis, que escondia numa pasta. Durante esse período,
gastou duas canetas inteiras. Leu cerca de 40 livros. Não apresentava sinais de
depressão. Parecia, segundo Cabral, alheio aos problemas que o cercavam. “Eu
imaginava que ele era apenas um compositor nordestino, mas encontrei um artista
plástico, um pensador, um filósofo”, diz Cabral. Ele pretende escrever um livro
sobre a experiência.
Belchior só não gostava de falar sobre sua situação.
Recusava-se a tocar violão e cantar. Edna impedia que ele fosse fotografado. O
casal também não tomava nenhuma providência para resolver os problemas
jurídicos. “A gente esperava que a situação se resolvesse, mas não acontecia
nada. E aquilo não condizia com um homem lúcido, com memória fantástica, que
fala várias línguas e tem uma quantidade enorme de músicas gravadas”, diz Jorge
Cabral.
“Esse tempo que ele falou que daria na carreira já está
longo demais. Só queremos notícias dele”, diz a irmã, Ângela Belchior. Belchior
não apareceu nem no enterro da mãe, que morreu em 2011. Por telefone, a
ex-mulher Ângela soa reticente. Não gosta de falar sobre um assunto tão
delicado com a imprensa. Ela conta que, desde 2007, Belchior não entra em
contato nem com os filhos. “Não entendo. Os empresários dele não entendem”,
diz.
Em julho deste ano, Cabral pediu que o casal saísse, dado
que Belchior e Edna não davam sinal de acabar com aquela situação de total
dependência. Ele os deixou na porta da sede regional da União Brasileira de
Compositores, com R$ 50 no bolso. Na União, Belchior tentou desbloquear o
pagamento de seus direitos autorais, comprometido pelos processos na Justiça.
Não conseguiu.
Belchior foi visto pela última vez na entrada do prédio, um
edifício moderno num bairro de classe média de Porto Alegre, em frente a uma
avenida bastante movimentada. Carregava uma pequena mala nas mãos e material de
pintura debaixo do braço. Belchior – na belíssima letra de “Comentário a
respeito de John”, ele cantava “eu prefiro andar sozinho” – estava, como
sempre, ao lado de Edna.
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