Estamos em guerra. Uma guerra que não é só contra nossos
corpos. É contra a ordem democrática, nossos recursos naturais, o patrimônio
público e nosso imenso mercado interno. Ao atrair os holofotes do mundo, o
Brasil se colocou no centro de um novo tipo de ação reconolonizadora: a guerra
híbrida.
No Mídia Ninja
Não é só golpe, é guerra: um tipo complexo e não convencional
de intervenção contra a soberania nacional. Só uma guerra é capaz de justificar
o incremento brutal da violência, da criminalidade, da sensação de insegurança
e do medo no Brasil pós-impeachment. Só uma guerra é capaz de explicar o
desmonte do Estado brasileiro e a entrega do patrimônio público e dos recursos
naturais do país ao capital privado internacional.
Mas o que é uma guerra? Na clássica definição de Clausewitz
(1790 – 1831), militar prussiano especialista em estratégias de batalhas e autor
do mais famoso tratado sobre o tema da guerra no Ocidente, a guerra seria
justamente a continuação da política por outros meios, amparada numa trindade
de “violência, ódio e animosidade”.
O que já era ruim, ficou muito pior: além do incremento da
violência, da sensação de insegurança e do medo, o Brasil experimenta também
uma escalada cada vez mais agressiva da cultura do ódio.
A verdade é que nunca fomos cordiais. Além dos quatrocentos
anos de escravidão que estão na base de nossa formação cultural, outras formas
de violência simbólica foram historicamente banalizadas e naturalizadas pela
elite nacional. É sempre bom lembrar que fomos o último país das Américas a
abolir a escravidão e que em outros países da região as universidades datam do
século XVI ou, no máximo, do século XIX, ao passo que as tardias universidades
brasileiras só surgiram nos anos 1930 e 1940. De colônia de exploração a
quintal dos interesses da oligarquia mundial, o que aqui se construía não era
um país, mas uma fazenda de cinco séculos.
A condição de quintal que vigorou não apenas no país mas em
toda a América Latina foi interrompida apenas em breves momentos em nossa
história. A maior interrupção dessa ordem colonial coincide justamente com o
maior período em democracia. Não por acaso, a América Latina ocupou a vanguarda
mundial da redução de desigualdades justamente no período em que governos
populares enfrentaram deliberadamente o interesse das grandes potências e
corporações multinacionais. Da ascensão de Chavez na Venezuela, ao impeachment
fraudulento de Dilma no Brasil, a região experimentou todo um ciclo de inclusão
social e participação popular nunca antes visto na história mundial. Esse ciclo
acabou e a ofensiva neocolonial já está em curso, oferecendo mais ou menos
resistência. O que nos difere da Venezuela é justamente o grau de resistência
oferecida a essa assombrosa ofensiva. O que na Argentina está sendo possível
pela via eleitoral, com a ascensão de Macri, no Brasil o impeachment
fraudulento possibilitou sem a necessidade de chancela das urnas e sem que
fosse necessário recorrer aos métodos tradicionais da guerra.
À violência estrutural de nossa sociedade, foi preciso
apenas incorporar o ódio explícito, tirando do armário racismo, machismo,
lgbtfobia, xenofobia e todo tipo de preconceito regional e de classe. O ódio é
uma arma útil, não apenas para a guerra mas também para a construção do clima
de animosidade que precisa ser socialmente construído contra determinados
atores sociais transformados em inimigos públicos.
A criminalização da política e especialmente do campo
democrático popular são parte dessa mesma estratégia. As privatizações, por
exemplo, derrotadas quatro vezes pelas urnas, estão na ordem do dia. As
operações jurídico-midiáticas bombardearam diariamente os lares do país para
que o desejo maior da sociedade fosse retirar das mãos dos políticos o
patrimônio público e os recursos naturais. Ocorre que quando se retira das mãos
da política as empresas públicas, se retira também das mãos da sociedade,
colocando nas mãos da iniciativa privada setores estratégicos que deveriam
estar subordinados ao interesse público.
A animosidade construída contra a política e especialmente
contra o PT são parte de uma complexa engrenagem de rapina. Os valiosíssimos
recursos naturais do Brasil e nosso patrimônio público estão em liquidação. Até
mesmo a confecção da moeda já foi posta à venda. Tudo isso com o pretenso
objetivo de equilibrar as contas públicas e reduzir o déficit fiscal, como se o
país fosse uma empresa medida por seus resultados contáveis. Um pedaço da
Amazônia do tamanho da Dinamarca está sendo entregue para a mineração mais
predatória que significará nada menos que catástrofe ambiental. Com a
privatização do setor elétrico, o país experimentará um verdadeiro “apagão para
todos” tal como o que já ocorre na Argentina macrista na qual as tarifas
elétricas explodiram. Tudo está sob ataque, até mesmo o setor produtivo
nacional. Embora pareça uma discussão técnica, a discussão sobre os juros
praticados pelo BNDES com a MP777 impactará profundamente no financiamento de
longo prazo e na infra-estrutura do país. Longe de ser uma operação de mercado,
é outra operação de guerra contra o setor produtivo do país que só interessa ao
capital financeiro e às corporações internacionais. Terra arrasada, como nas
guerras. Guerra híbrida, guerra neocolonial.
Nas guerras híbridas, não temos estados nacionais em
conflitos deliberados, mas outros atores e uma complexa teia de meios
convencionais e não convencionais de forma adaptativa, em busca de seus
objetivos. Do ponto de vista dos meios convencionais, do emprego das Forças
Armadas, é o estado nacional quem impõe o controle territorial sobre
determinadas populações. O Rio de Janeiro é o exemplo perfeito do emprego de
meios convencionais de guerra contra a própria população.
Os horrores vividos pela população do Jacarezinho são parte
de uma estratégia distracionista que opera por duas vias: distrai a população e
as próprias Forças Armadas, oferencendo tanto um falso inimigo a ser combatido
como o palco falso do um conflito, enquanto a grande operação de rapina e
controle ocorre na arena principal, sem holofote nem resistência.
Não apenas nossos corpos e nossas vidas estão sendo
abatidos. Não apenas as metrópoles, mas todo o país está anestesiado pelo medo
e distraído pelo ódio. A violência contra a ordem democrática e a soberania
nacional legitima e inspira uma espiral de violências, tanto físicas quanto
simbólicas, que se multiplicam e retroalimentam o monstro neofascista que
assombra o início do século XXI em todo o mundo. É o preço que estamos pagando
todos pela crise criada pelo grande capital. É a prova de que as corporações
são incapazes de reverter o processo acelerado de degradação do planeta. É a
certeza de que uma guerra híbrida precisa ser combatida em diferentes fronts de
resistência e que parte central da batalha ocorre no campo cultural, na
auto-estima das pessoas e na defesa intransigente dos territórios mais
vulneráveis.
Só uma revolução cultural têm potência para reverter esse
panorama sinistro. A nossa sorte é que ela já começou.
*Realizador de cinema e TV, midiativista e agitador cultural.
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