Em abril de 1980, Lula liderava uma greve de metalúrgicos
que já durava 17 dias em fábricas da região de São Bernardo do Campo. Na
ocasião, foi preso pela Polícia Militar. Mas como Lula foi parar nos calabouços
da ditadura militar? O que a prisão significou para o período e para o futuro
presidente da República? Como foi o momento em que ele foi solto? Para entender
essas questões, a BBC News Brasil consultou depoimentos, conversou com
ex-companheiros de Lula e com pessoas que participaram das mobilizações do
período.
"Foi Marisa, sua mulher, quem viu, deu grito avisando
que ele vinha a pé. O motorista da Veraneio do Dops ficou com medo quando viu
aquela multidão perto da casa do Lula e o deixou no meio do caminho. E o líder
metalúrgico, recém-saído da cadeia, chegou a sua casa a pé, carregando uma
pequena mala. Mas, antes, a peãozada que invadiu sua casa e as ruas vizinhas,
assim que deu a notícia no rádio, ergueu Lula nos braços, estouraram rojões e
voltou-se a ouvir em São Bernardo do Campo: 'Luuuuula, Luuuuuula,
Luuuuuula'."
Foi assim que, no dia 21 de maio de 1980, o jornalista
Ricardo Kotscho iniciou a descrição, em reportagem no jornal Folha de S.Paulo,
da chegada de Luiz Inácio Lula da Silva a sua casa depois de 31 dias de prisão.
O então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
havia sido detido no dia 19 de abril por policiais do Departamento de Ordem
Política e Social (Dops), órgão de repressão da ditadura militar que governava
o país.
Os motivos do encarceramento de Lula eram bem diferentes da
recente detenção, que foi encerrada com a decisão do Supremo Tribunal Federal
(SFT) de suspender prisões após condenações apenas em segunda instância. O
órgão decidiu que os processos precisam transitar em julgado em todas as
instâncias para que o réu seja preso. Nesta sexta-feira (08/11), a Justiça
Federal de Curitiba determinou sua soltura com base na decisão do Supremo.
Dessa vez, Lula passou por um processo criminal e foi
condenado à prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no âmbito da
Operação Lava Jato — ele nega todos os crimes. Nos anos 80, o então
sindicalista foi detido sem mandado judicial, apenas com base na Lei de
Segurança Nacional.
Em abril de 1980, Lula liderava uma greve de metalúrgicos
que já durava 17 dias em fábricas da região de São Bernardo do Campo, no ABC
paulista, área industrial na Grande São Paulo.
A paralisação vinha na esteira de outras mobilizações em
anos anteriores, e a ditadura temia que ela se prolongasse demais. Ou seja, a
esperança dos militares era de que a prisão de Lula e de outros líderes
sindicais desmobilizasse greve.
Isso não aconteceu, no entanto. A detenção do proeminente
sindicalista fortaleceu o movimento e estimulou a opinião pública a tomar
partido de suas demandas.
Mas como Lula foi parar nos calabouços da ditadura militar?
O que a prisão significou para o período e para o futuro presidente da
República? Como foi o momento em que ele foi solto? Para entender essas
questões, a BBC News Brasil consultou depoimentos, conversou com
ex-companheiros de Lula e com pessoas que participaram das mobilizações do
período.
As greves antes da prisão
As grandes greves dos metalúrgicos do ABC começaram em 1978,
na montadora Scania. Depois, elas se espalharam para outras empresas da região
— o setor tinha cerca de 140 mil funcionários no ABC paulista, região fabril
que englobava originalmente as cidades de Santo André, São Bernardo e São
Caetano (posteriormente, Diadema também passou a fazer parte do
"cinturão").
Mas o descontentamento dos trabalhadores vinha de antes. Em
depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), que investigou crimes
cometidos pela ditadura, Lula lembrou que arrochos salariais e perdas de
benefícios começaram ainda no final dos anos 1960.
"Até então, cada metalúrgico da indústria
automobilística recebia todo santo mês um aumento de salário. Se você pegar a
carteira de um trabalhador da Volkswagen em 1967, vai ver que ele recebia
aumento em janeiro, fevereiro, março. Em abril tinha antecipação do dissídio
coletivo... Em 1968, as empresas passaram a diminuir esses aumentos e acabar
com alguns privilégios que a gente tinha. Fomos sendo sufocados... Isso criou
um clima de animosidade [entre companhias e trabalhadores]."
Posse de Lula na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 1978, dois anos antes da prisão
|
Segundo Francisco Macedo, doutor em história pela USP e
professor do Instituto Federal de Minas Gerais, as primeiras greves de 1978
foram realizadas dentro das fábricas. "Os trabalhadores entravam na
fábrica e cruzavam os braços, porque, na ditadura, não havia espaço para
expressão fora desse ambiente", conta Macedo, cuja dissertação de mestrado
foi sobre o sindicalismo do ABC.
Os operários saíram vitoriosos naquele ano, conseguindo um
aumento substancial de salários e outras melhorias.
No ano seguinte, 1979, as companhias decidiram expulsar da
linha de montagem quem parasse dentro da empresa — uma maneira de separar
grevistas de quem continuava trabalhando. Isso levou os sindicalistas para o
portão e às manifestações nas ruas.
"Nesse período, houve forte repressão do aparato
estatal. Houve uma intervenção no sindicato, afastando Lula e outros dirigentes
da direção, o que enfraqueceu a greve", conta Macedo.
A contragosto, os trabalhadores aceitaram uma proposta das
empresas, encerrando a paralisação naquele ano. Lula conta que saiu da
assembleia "xingado de traidor" por ter aceitado negociar com os
patrões enquanto boa parte dos companheiros queria continuar parada.
Greve preparada
Depois do fim da intervenção no sindicato, em julho de 1979,
Lula e os colegas começaram a se preparar para a campanha salarial do ano
seguinte. "Começamos as mobilizações mais de seis meses antes da data-base
do dissídio, que era 1º de abril", lembra Djalma Bom, de 80 anos,
tesoureiro do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC na época.
Djalma conta uma história curiosa sobre a criação do fundo
de greve, uma arrecadação de dinheiro e alimentos que teve grande importância
para que o movimento de 1980 se prolongasse por 41 dias.
"Em uma das assembleias, um companheiro me indicou a
leitura de Germinal, do Émile Zola. No romance, os trabalhadores da indústria
mineral da França criam uma arrecadação para que eles consigam sobreviver
durante a greve. Tive a ideia de fazer o mesmo."
Nos meses anteriores, o sindicato e a Igreja Católica, que
apoiava os trabalhadores, abriram as portas de templos do ABC e da Zona Leste
de São Paulo para angariar recursos. A ideia era suprir as necessidades dos
grevistas que não receberiam salários durante a paralisação. "Na greve, o fundo
ajudou 32 mil famílias, distribuímos 480 tonelada de alimentos", diz
Djalma.
Para o historiador Francisco Macedo, a preparação para 1980
teve outra inovação: membros do sindicato visitaram a casa dos funcionários
para conversar sobre o movimento com as famílias. "A ideia era explicar
para os parentes a importância da paralisação e de sua continuidade, porque, no
momento da greve, os trabalhadores poderiam sofrer pressão dos familiares para
retornar ao trabalho."
Djalma se lembra de outro aspecto importante para fomentar
os trabalhadores e a opinião pública. "O Lula teve uma compreensão de que
nossa luta não era apenas por melhores condições de salário e de trabalho, mas
sim pelo restabelecimento da democracia no Brasil. A luta deveria ser mais
política", diz.
Macedo concorda com essa análise. "Os trabalhadores
perceberam que todo o aparato repressivo do Estado estava contra eles, e não
apenas as empresas. A luta passou a ser não apenas pelo aumento salarial, mas
pela democracia também. Eles perceberam que sem democracia a luta nunca
chegaria a um resultado."
A greve começou no dia 1º de abril, mas, nos dias seguintes,
as empresas se recusaram a negociar melhorias. No entanto, como havia uma
sensação de derrota em relação ao ano anterior, o sindicato acreditava que
deveria "ir até as últimas consequências", segundo Macedo.
Por outro lado, nos dias seguintes, boa parte trabalhadores
se desmobilizou: eles queriam voltar a receber salários depois de dias sem
nenhum avanço tangível nas negociações.
Nesse sentido, Djalma conta uma conversa que teve com Lula
antes de uma assembleia no estádio municipal da Vila Euclides: "Lula me
falou: 'Djalma, para a greve continuar, para os trabalhadores continuarem
mobilizados, precisa acontecer alguma coisa extraordinária'".
Lula não imaginava, mas esse fato "extraordinário"
iria ocorrer no dia 19 de abril.
A prisão dos sindicalistas
Lula fichado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), onde ficou preso por 31 dias em 1980 |
Por volta das 6h30, oito homens armados com metralhadoras
cercaram a casa de Lula, no bairro de Ferrazópolis, em São Bernardo. "Na
minha casa estava o Geraldo Siqueira Filho (então deputado estadual) e o Frei
Betto."
"Quando eles (militares) bateram na porta, o Frei Betto
falou: 'a polícia tá aí'. Eu não tinha nem lavado o rosto ainda. Falei para
eles: 'espera que vou me trocar'. Eles disseram: 'não, não pode esperar'.
Voltei para dentro de casa e fui me trocar", contou Lula, em depoimento à
Comissão Nacional da Verdade.
Vários sindicalistas do ABC foram presos no mesmo momento.
Entre eles, o próprio Djalma Bom e Isaias Urbano da Cunha, hoje com 79 anos.
"Abri a porta de casa, e era o pessoal da Polícia Federal. Me deram socos
e me algemaram com as mãos para trás. Meu filho tinha oito anos e saiu correndo
pela casa, assustado. Me levaram preso de pijamas, descalço", diz Isaias,
que na época era dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André.
O advogado José Carlos Dias, que defendia presos políticos
do regime militar, também foi detido no mesmo dia. "Soube que o Lula tinha
sido preso. Decidi sair de casa, mas logo me disseram que havia vários homens
de terno e gravata na rua. Achei que havia algo grave acontecendo, e peguei meu
passaporte. Falei para minha mulher: 'se eu não ligar em 20 minutos é porque
fui preso'."
Na praça Panamericana, Zona Oeste de São Paulo, ele foi
detido por "homens com metralhadoras". "Havia umas 15 pessoas
presas no Dops, entre elas vários clientes meus. Não há nada pior que você ser
advogado e acabar preso com seus próprios clientes", conta Dias, que foi
solto no mesmo dia e, anos depois, viraria ministro da Justiça no governo de
Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Na época, o chefe do Dops era o delegado Romeu Tuma (1931-2010),
que depois se tornaria senador por São Paulo. Ao contrário de outros presos
políticos, que foram torturados e até mortos nos porões da repressão, Lula
conta que foi bem tratado pelo então policial. "O Tuma me tratou
dignamente, com humanidade. Minha mãe estava com câncer. Ele me deixou sair
algumas vezes à noite para vê-la", contou.
Eurídice Ferreira de Melo, conhecida Dona Lindu, morreu de
câncer no dia 12 de maio, enquanto o filho estava preso. Djalma Bom se lembra
do momento em que Lula soube da morte. "Ele foi chamado na direção do
Dops. Quando voltou para a cela, tinha lágrimas nos olhos e disse: 'Djalma,
minha mãe faleceu'."
O sindicalista foi autorizado por Tuma a ir ao velório.
Coincidentemente, anos depois, dois parentes do ex-presidente morreram enquanto
ele estava preso em Curitiba: um irmão e um neto — no primeiro caso, a Justiça
Federal não autorizou sua ida ao velório.
O efeito da cadeia
Em 1980, a prisão de Lula e outros sindicalistas acabou
tendo o efeito contrário do que pretendia a ditadura militar: a greve se
fortaleceu.
"Os militares cometeram a burrice de me prender com 17
dias de greve. O que aconteceu depois? Foi um motivo a mais para greve
continuar. Houve passeatas e mobilização [contra as prisões], até com o [poeta]
Vinicius de Moraes", disse Lula.
Em 22 de abril, por exemplo, um operário da Volkswagen, uma
das fábricas mais afetadas, contou como a detenção de Lula foi vista por seus
companheiros e até pela família: "Um vizinho meu, fura-greve, só parou (de
trabalhar) por causa da prisão do Lula. Ele me falou: 'isso não pode
acontecer'. Até meu sogro e minha sogra que eram a favor do governo, agora
viraram contra", disse o operário à Folha de S.Paulo.
Dentro da cadeia, o clima era de incerteza: os sindicalistas
chegaram a fazer uma greve de fome por quatro dias.
Isaias, que ficou 28 dias preso, relata uma conversa que
teve com Lula na cela. "Lula me disse que não sabia se a gente sairia vivo
ou morto, mas que entraríamos para a história. Ele disse que nossos netos ou
bisnetos chegariam no governo um dia. Ele não disse que ele seria o governo, o
presidente, mas sim os nossos netos."
Para o historiador Francisco Macedo, as mobilizações dos
metalúrgicos tiveram outros componentes favoráveis: a cobertura massiva da
mídia e uma certa abertura do regime militar com ações como a anistia e o fim
do bipartidarismo. "Esse contexto fez com que Lula surgisse como um líder
bastante popular, iniciando as conversas para a criação do Partido dos
Trabalhadores."
Com o aumento da repressão e uma pressão interna pelo
retorno às fábricas, os trabalhadores encerraram a greve sem que suas demandas
fossem atendidas pelos empresários.
Para Macedo, no entanto, os metalúrgicos tiveram vitórias
simbólicas nos anos seguintes à paralisação de 80, como a criação da Central
Única dos Trabalhadores (CUT) e do PT, além da retomada da democracia em 1985.
"O principal legado da greve de 1980 é simbólico: a ideia de que os
trabalhadores são sujeitos ativos, que se organizam e lutam por suas
reinvindicações no espaço público", diz.
Para a indústria, o efeito foi um prejuízo material: 75 mil
veículos deixaram ser produzidos no período, segundo a Associação Nacional dos
Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
'Nas mãos dos metalúrgicos'
Militantes e sindicalistas foram até sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para acompanhar Lula antes de sua prisão, em abril de 2018 |
Lula foi liberado do Dops por volta das 20h naquele 20 de
maio. O juiz Nelson da Silva Machado Guimarães considerou que não era mais
necessário manter a prisão dos sindicalistas depois do fim da greve. "A
ordem pública não se acha mais perturbada", afirmou o magistrado.
Uma multidão esperava Lula em São Bernardo com fogos de
artifício e cachaça para comemorar a soltura do líder. Ao chegar, ele deu uma
entrevista ao jornalista Ricardo Kotscho em cima dos ombros dos companheiros.
"Esse é um dos momentos mais felizes da minha vida", disse. Kotscho
depois viraria secretário de imprensa do governo Lula no início do primeiro
mandato do petista.
No dia, Lula afirmou não ter medo de ser detido novamente.
"Se eu tiver de ser preso pelos mesmos motivos, por representar os anseios
da minha categoria, eles podem me prender mais 500 vezes."
Embora as discussões sobre a criação do PT já estivessem em
curso, o sindicalista foi lacônico sobre seu futuro: "Sou um homem que
nunca fez planos para o futuro. Meu destino sempre foi traçado pela categoria,
está nas mãos dos metalúrgicos".
Por coincidência, foi também das mãos dos metalúrgicos que
Lula saiu para ser preso novamente pela Polícia Federal, mas 38 anos depois, em
7 de abril de 2018, dessa vez condenado em terceira instância pelo caso do
tríplex do Guarujá. Uma imagem do ex-presidente sendo carregado pela multidão
em frente ao sindicato virou um símbolo daquele momento.
Hoje, seus companheiros de ativismo sindical têm visões
conflitantes sobre as duas prisões.
Para Isaias, por exemplo, elas não têm nenhuma relação.
"A diferença é grande: em 1980 ele foi um preso político. Dessa vez, não:
foi preso por desfalques, por desvios de dinheiro, e não conseguiu provar sua
inocência. Ele foi preso como um criminoso, naquela época ele era um
herói", afirma.
Já Djalma pensa diferente: "Para mim, Lula continua
sendo a mesma pessoa. Ele foi o preso político mais importante do mundo. A
prisão foi uma armação para que ele não pudesse concorrer à Presidência no ano
passado", afirma.
'Junto a Lula'
Preso ou não, Lula continua sendo um assunto importante
mesmo para ex-companheiros que deixaram o ABC paulista e o sindicalismo para
sempre.
José Alves Bezerra, de 71 anos, por exemplo, conheceu o
petista no final dos anos 1970, em São Bernardo. Junto ao líder, participou de
assembleias e greves no ABC, o que lhe rendeu um casamento (ele a conheceu a
esposa no sindicato) e uma demissão da Volkswagen, onde trabalhava.
Mas depois Bezerra se aposentou em outra empresa e voltou
para a terra natal, a cidade de Várzea Alegre, no interior do Ceará. De lá,
acompanhou a trajetória recente do ídolo: do popular presidente da República a
presidiário em Curitiba. "Nunca mais o vi pessoalmente, só pela TV. Acho
que ele deveria ser inocentado, mas quem sou eu para falar alguma coisa,
né?", diz, por telefone.
A admiração pelo político passou do ex-metalúgico para seu
filho, um professor de história de 26 anos. "No 1º de maio, meu filho foi
até Curitiba para ficar na frente da prisão do Lula", diz.
Fonte: BBC Brasil
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